«(…)
O cacarejar estridente das mulheres, os gritos roucos dos homens, o rolar
tonitruante das charruas despertam François ao romper do dia. Génova é uma cidade
cheia de ruído e de febre. As suas gentes não param de berrar, de uma janela para
a outra, do fundo das portas carrais, do alto dos terraços. Mil ecos intempestivos
revoluteiam por entre as ruas estreitas, ressaltam na pedra, introduzem-se pelas
lucarnas e bicam os tímpanos, sem jamais se decidirem a bater asas na direcção
de um céu demasiado calmo, demasiado azul e distante.
François assesta um pontapé em Colin,
que, resmungando, se espreguiça e mergulha a mão numa tigela de água poisada no
chão. O coquillard asperge o rosto e a barba com relutância antes de descolar
lentamente as pálpebras, deixando entrever o seu olhar glauco das manhãs más. Villon
está já ocupado a atar a trouxa. Colin vira costas, recalcitrante. O barco só levanta
ferro amanhã... Colin não se cansa de tomar François por alvo das suas pragas desde
que os dois saíram de Paris. Nada deve a Chartier. A sua missão foi cumprida. Fust
abriu a sua oficina de impressão. A verdade é que não vê porque terá de correr
metade do mundo para se lançar nas goelas das hidras e dos ciclopes que certamente
o esperam em paragens longínquas. Imagina esses antigos monstros salivando de prazer
à ideia de devorarem um francês bem rosado, bem embebido de aguardente de bom
vinho. E, além disso, tem horror ao mar.
François ter-se-ia inquietado se
visse Colin encantado com semelhante viagem. Colin é um rezingão que saboreia o
seu mau humor constante. Refocila nele como um porco no estrume. Blasfema e escarra,
bate com o pé, dá de ombros, procura constantemente rixas. Quanto às hidras e aos
ciclopes, rebenta de ganas de os ver atravessarem-se-lhe no caminho, para lhes dar
cabo dos queixais.
François desce os degraus de um pulo
sem mais demora, saco às costas. Ouve Colin vociferar, lançar-lhe maldições, partir
a bacia de barbear contra a parede da mansarda. Em suma, não tardará que o siga.
No passadiço de acesso a bordo, os
moços de fretes atropelam-se. Uns rolam grandes tonéis, os outros içam arcas e
malas servindo-se de cordas, gesticulando e berrando, todos eles, com esse bom
humor latino, esse temperamento inquebrantável do povo miúdo, que, recusando-se
a sucumbir à miséria, e, apesar de tudo, se quer filósofo. Os marinheiros, menos
indigentes, alimentados e alojados a bordo, observam a manobra com um ar falsamente
desprendido. Ao fim da tarde, tudo parece estar devidamente aprontado. Exaustos,
os marujos e os cabos deitam-se ao comprido à sombra das velas. O tumulto do carregamento
dá lugar a um silêncio sereno que embala brandamente o navio. As tonalidades
quentes do ocaso trepam com vagar ao longo dos mastros, pintando a madeira escura
de um vermelho intenso. Cordas e cabos desenham no azul quadrículas rectilíneas
e nítidas, como que traçadas a buril. Ao longe, um emaranhado confuso de edifícios
e campanários ondula sob uma luz incerta. Os armazéns e as docas evaporam-se numa
miragem alaranjada. Uma gaivota solitária apostrofa o sol com os seus gritos exasperados.
Villon
vira a cabeça na direcção do largo. Fixa os olhos na linha do horizonte que se esbate,
na imensa extensão de mar e de céu que se desdobra a perder de vista,
convidativa, exaltante. O dia afoga-se nela com indolência, arrastando consigo
o passado para o fundo das massas de água. As boas e as más memórias retiram-se
sem ruído/ lentamente sepultadas pela noite que alastra. Dói a François a facilidade
com que corta todas as pontes. Em vão procura representar-se uma esquina de
rua, uma margem de rio, o adro de uma catedral, tudo o que vê são apenas imagens
amarelecidas, mirradas. Em vão procura reter por um momento os fantasmas que tanto
amou, Jeanne, Catherine, Aurélia, eis que todos esses rostos de mulheres, subitamente
feridos de decrepitude, se diluem de imediato, varridos pelas promessas mudas do
vento. François recrimina-se por ceder com tanta facilidade, como um grumete cândido,
ao perfume de aventura que a brisa marítima traz consigo». In Raphael Jerusalmy, Os
Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira,
Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.
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