quinta-feira, 3 de maio de 2018

Segredos de Lisboa. Inês Ribeiro e Raquel Policarpo. «Muitos séculos tinham passado desde que os grandes barcos a remos chegavam e partiam daquelas costas repletos do cobre e estanho que os locais exploravam rio acima»

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«(…) Depois de muitos anos afastado da vida da cidade, abre hoje os seus braços e recebe portugueses e estrangeiros de igual forma, mostrando-se no seu melhor. Quem sabe, alguns poderão ouvir ainda os apressados passos de dona Mécia a caminho das cozinhas, sons de um passado longínquo que continuam a ecoar nestas ruas e paredes tão antigas.

O núcleo arqueológico da Rua dos Correeiros. Um bolo de camadas sob a sede de um banco
O Sol descia lentamente sobre o rio e levava consigo os últimos raios de luz de um dia de trabalho árduo. Sentado à porta da sua cabana, o pescador apressa as mãos e tenta dar os últimos pontos na rede que estava a remendar. Se não conseguisse acabar a tarefa enquanto ainda havia sol não poderia voltar ao rio na manhã seguinte, o que significaria mais um dia de trabalho perdido. Do interior da cabana chegavam os ruídos típicos de uma família na azáfama das tarefas domésticas. Sobre o barulho das panelas e do almofariz sobressaía a discussão dos mais novos sobre quem acenderia o lume na pequena lareira escavada no centro da casa, e os resmungos do vencido, a quem cabia a tarefa de ir buscar água para começar a fazer o jantar. A falta de peixe fresco causada pelas redes estragadas e pela paragem forçada do pescador obrigaria a uma refeição de peixe seco, o que, por sua vez, reduziria os ganhos da venda deste produto no mercado da povoação. Mas enfim, eram os contratempos habituais da vida de pescador, e certamente que alguma outra família cederia uns quantos mexilhões frescos para ajudar a compor a refeição, como ele próprio tantas vezes fizera.
Na pequena comunidade de pescadores da praia, a proximidade e a amizade cresciam através das paredes partilhadas das cabanas e do espírito de entre ajuda, ligação esta que não se estendia ao restante núcleo da povoação que habitava o topo da colina e se dedicava ainda ao comércio dos metais com os povos de longe. Concentrado no ritmo da agulha que rapidamente passava pelas malhas da rede, o pescador relembrava as histórias que desde miúdo ouvia contar aos mais velhos, sobre as gerações mais antigas e a grande viagem que as trouxera até à pequena enseada onde viviam desde então. À volta da lareira, reviviam as aventuras dos antigos navegadores que tinham saído do pequeno mar que banhava as costas da Fenícia e atravessado o estreito, rumo a um desconhecido oceano e aos famosos metais da península.
Muitos séculos tinham passado desde que os grandes barcos a remos chegavam e partiam daquelas costas repletos do cobre e estanho que os locais exploravam rio acima. Nos seus dias, esses comerciantes eram já ama minoria entre uma população dedicada ao trabalho do campo, à pesca e à olaria, que desenvolvera a cidade e assim encontrara uma alternativa às épocas de crise que, mesmo por mar traziam conflitos e a queda do valor dos metais, até então a base das colónias fenícias. Da soleira da sua porta, o pescador não consegue imaginar que novas mudanças a sua aldeia ainda irá sentir nos próximos anos. Na paz da sua enseada, muito menos conseguirá imaginar os séculos de conquistas e os impérios que por ali passarão e mudarão completamente a paisagem daquela pequena colina que um dia se chamará Lisboa». In Inês Ribeiro e Raquel Policarpo, Segredos de Lisboa, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-626-706-3.

Cortesia de EdosLivros/JDACT