«(…) Finda a atracagem dos sete
navios, dentro dos quais viajavam centenas de rudes marinheiros queimados pelo
sol e pela salsugem, andrajosos, magros, fedorentos, mas todos heróis,
procedeu-se à cerimónia de boas-vindas, não sem antes de Manuel I ordenar a um
dos seus validos que tentasse impor silêncio e respeito na zona onde ele e a
vasta comitiva se encontravam. E voltando-se para João Faria, que estava atrás
de si, pediu: falai agora, preclaro mestre.
Incapaz de disfarçar o
nervosismo, o magistrado do Alto Conselho deu meia dúzia de passos em frente,
ajeitou o capeirote sobre os ombros, voltou a inclinar a cabeça numa atitude de
reverencial respeito pelo soberano, respirou fundo, e disse então com a voz
pausada e firme: não escondo, meu
senhor, a dificuldade que sinto em discursar perante Vossa Alteza, ínclito Rei
de Portugal e dos Algarves de Aquém e de Além Mar. Sei da enorme tarefa e do
encargo incomportável que assumi sobre os meus ombros, eu que sou destituído da
prática de falar, do dom da eloquência, da agudeza de espírito e em absoluto de
todo o saber. Ainda assim tentarei não vos decepcionar, e cumprir no estreito
limite das minhas pobres faculdades o honroso encargo que me atribuistes. Dizia
Sócrates, aquele sapientíssimo homem, se é que se deve chamar homem a quem é
considerado pai de toda a filosofia, deus de todos os filósofos, intérprete e
mensageiro da mente divina, que um homem pode, honesta, sã e felizmente, realizar
uma obra, mas mais do que uma, afirmava então, só casualmente as consegue fazer
bem feitas. Meditando comigo nesta preciosa sentença de ouro, receio parecer
estar agora eu, que sou dado a actividades diferentes, a acometer temerária e
imprudentemente a dificílima tarefa de orador consumado. Acresce que mesmo sem
discurso, por mais notável que fosse, o que não é o caso, bastaria a
augustíssima presença de Vossa Alteza Real para tornar divina esta cerimónia
que a todos comove, mas que só a vós honra.
Do lastro das naus começava
entretanto a desprender-se um intenso cheiro a trampa, urina, sudação e álcool,
a animais e ao excremento dos animais, que aos poucos ia tomando conta do porto
da ribeira e a baixa da cidade. Indiferente porém a tal circunstância, o orador
virou-se de seguida para o capitão da esquadra, Fernandes Ataíde, colocado à
direita de Manuel I, e prosseguiu o discurso no mesmo tom solene, definitivo, vagamente
arrebatado.
Com embaraço e emoção vos falo nesta hora única, inteira, absoluta, mas
isso apenas se deve ao facto de o invictíssimo rei de Portugal me ter dado a honra,
decerto devida a outros com maiores qualidades que as minhas e mais saberes do
que possuo, de me dirigir em seu nome pela graça de Deus, e em nome de
Portugal, ao heróico capitão dos mares, ao dono dos oceanos, e saudá-lo, bem
como na sua pessoa todos os marinheiros vivos e mortos que vos prestaram
fidelidade e obediência, com todo o ardor e o mais profundo sentimento de
apreço e orgulho. À excepção do piíssimo senhor Manuel I, todos nós, todos os
que aqui vedes, somos ninguém a vosso lado. Bem-vindo sejais, pois, à terra de
onde partistes sem medo da morte e do mar. Que o Altíssimo vos proteja,
glorioso capitão! Que Deus abençoe Portugal. Que o Divino continue a iluminar a
pureza de espírito de Sua Alteza e nosso sacratíssimo rei! Disse.
Amén, acrescentou o monarca. Amén,
ouviu-se em coro. Uma explosão de aplausos com mais vivas ao rei e à rainha, ao
Papa e a Deus, a que se seguiram uma nova salva de artilharia ordenada pelo almirante-mor
e o toque dos sinos no alto das igrejas, encerraram a cerimónia protocolar da
chegada das naus a Lisboa. Nessa tarde ainda, Manuel I reuniu-se na Casa da
Mina com o comandante da esquadra, alguns conselheiros políticos e militares, o
arcebispo de Lisboa, uns tantos membros do alto clero, e os quatro mais importantes
fidalgos que, dias mais tarde, haveriam de integrar a numerosa embaixada com
destino a Roma. O monarca queria discutir os últimos pormenores da deputação à
sede da cristandade, certificar-se de que tudo estava certo e perfeito, tomar
conhecimento do teor da oração de obediência a Sua Santidade e, finalmente,
recolher notícias do capitão dos navios sobre a sua longa viagem ao outro lado
do mundo. Todos falaram; todos exaltaram o espírito empreendedor de el-rei;
todos reconheceram a importância histórica do acontecimento; todos elogiaram a
elevada categoria do discurso de Diogo Pacheco a Sua Santidade, ali traduzido
do latim para português, por ele mesmo, e, para terminar, todos ouviram desvanecidos
o relato de Fernandes Ataíde sobre o aspecto dos povos e os seus estranhos
hábitos, bem como as dificuldades vividas pelos bravos marinheiros nos mares e
em terra, onde a cada instante morava o perigo da morte e do acaso». In
José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN
978-989-555-364-8.
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