«(…) Acabastes de me comover, meu
senhor, confessou João Faria, com as mãos cruzadas sobre o peito, antes de
perguntar qual o sentido a dar às palavras e de quanto tempo dispunha para
elas. Apenas umas palavras breves, muito breves. Quanto ao sentido nem é preciso
dizer-vos qual deverá ser, respondeu o monarca, impositivo, sobranceiro. Depois
de pronunciar outra acentuada vénia, João Faria retirou-se e foi colocar-se na
rectaguarda dos restantes membros da comitiva, para aí, de costas voltadas ao
rio, sozinho, concentrado, estruturar à pressa o discurso e desacelerar o ritmo
do coração. Entretanto, à medida que as sete naus se aproximavam do Cais da Ribeira
ia aumentando o clamor da multidão numa espiral sempre crescente de fascínio e
festa. Muitas pessoas, porventura as mais religiosas ou as mais tementes,
ajoelharam-se, de mãos postas, em oração, os homens tiraram os gorros da
cabeça, e o rei, cada vez mais inquieto, repetia a cada instante e só para si:
que beleza, Senhor! Deus está connosco! Louvado sejas Tu. Até que ao meio-dia
em ponto, hora a que, por mera coincidência ou graça do Altíssimo, Manuel I viera
ao mundo no já distante trinta e um de Maio de mil quatrocentos e sessenta e
nove, a primeira nau acostou ao cais. Uma salva de artilharia troou nos céus de
Lisboa, a que se seguiu de imediato o toque dos sinos em todas as igrejas e
capelas da cidade. E quando os canhões deixaram de disparar e a segunda
caravela atracou ao pontão do molhe, mesmo em frente a Sua Alteza, todos se
calaram, talvez por medo, talvez de espanto. Ali vinha o elefante, uma fera
corpulenta, disforme, medonha, um animal nunca visto pelos portugueses. E todos
se benzeram.
Santo Deus!, desembuchou o rei ao
ver aquele bicho imenso, brutal, que de tanta imperfeição só podia ser concebido
pela mão do Demónio. E virando-se para Diogo Pacheco e Garcia Resende, os que
estavam mais próximos dele, perguntou alarmado: é isto que vou mandar a Sua
Santidade!? Aquilo é um tesouro, Alteza, avisou Diogo Pacheco, tentando pôr cobro
à desconfiança do soberano. O que ali vedes é um valiosíssimo tesouro que
simboliza a vitória da descoberta de novas terras, um verdadeiro testemunho da
chegada das vossas naus ao outro lado do mundo. Receio que o sapientíssimo
Santo Padre se assuste..., voltou a desabafar o rei, mas agora sorridente. Que
presente mais fabuloso do que este lhe poderíeis oferecer, meu senhor!?,
questionou entretanto Garcia Resende, afirmando-se na certeza de que o Sumo
Pontífice iria apreciar, e muito, tão admirável oferenda. Numa atitude de
intranquila coragem, Manuel I confessou que não tinha medo da fera e já sabia
que a besta era imponente, mas tanto jamais imaginara. E queixava-se de que
nunca ninguém lha tinha descrito com a devida precisão.
Não foram apenas o rei e alguns
cortesãos a assustar-se vagamente com o porte fantástico do elefante. Houve
padres que, ao verem o animal, foram recolher-se nas igrejas, convencidos de
que ele encarnava a imagem sinistra de Satanás ou, não sendo bem assim, que
possuía pelo menos a marca da sua inspiração. Do mesmo modo e por razões idênticas
à dos sacerdotes em disfarçada fuga, algumas mulheres, porventura as mais sensíveis
ao pânico e ao horror, caíram desmaiadas no chão frio e húmido da margem do
rio. Menos assustadora foi, porém, a chegada das terceira e quarta naus sobre
cujos convés viajavam um cavalo e uma onça enviada ao monarca português pelo
rei de Ormuz. O próprio bispo de Lisboa, Martinho Costa, com ar inocente,
chegou a elogiar a perfeição física do cavalo e da onça, observando que esta se
assemelhava a um gato grande. Mas quando um marinheiro cometeu a graça de lhe
lançar duas galinhas moribundas, levadas a bordo, e o animal se atirou a elas,
retraçando-as num ápice, todos no pontão do cais estremeceram. O próprio
soberano, amedrontado, recuou um passo.
Não tenhais medo, meu senhor,
aconselhou o capitão da esquadra, Nuno Fernandes Ataíde, que se encontrava já
desembarcado na plataforma do cais ao lado do rei. A fera é mansa, vem
domesticada e presa. Achais? Posso garantir-vos, Alteza, voltou a afirmar ao
monarca, sobre cuja testa lívida escorriam duas gotas de suor. Bom, ela também
não vai ocupar os meus aposentos..., ironizou o rei. Todos à volta riram com a
graça». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor,
2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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