«(…) Senhora... Não digas nada,
Briolanja, nem sequer um ai sobre o assunto, ordenou a jovem num tom de voz
igualmente amável, mas sofrido. Uma vez proferidas tais palavras, Leonor
dirigiu-se para a janela da câmara que dava para o terreiro, entreabriu-a um
pouco, espreitou o ambiente lá fora e, com um sorriso de indisfarçável cinismo,
chamou a ama: anda cá, minha boa amiga, anda ver a turba, anda ver como ela se comporta
no campo. Ridículos, todos eles. Falam e riem como dementes; e agora repara no
que te digo: são quase tão estúpidos e feios como os pobretões que estão lá
adiante a assistir ao espectáculo, em cima uns dos outros, tremendo de fome e
de frio. Mas é esta escumalha que vês ali em baixo, vestida a preceito e
carregada de peças de ouro e de prata, que daqui a um bocado vai testemunhar a
minha aliança com o fidalgo João Lourenço. Estás a ver a escória? Estás a vê-la?
Observa-a, mulher, observa-a bem...
Senhora!, interrompeu Briolanja,
assustada, com ar grave e de mãos cruzados sobre o peito. Como pode dizer isso
dos nobres se a senhora também lhes pertence? Aquele é o seu mundo, senhora... Enganas-te,
boa amiga, interrompeu abruptamente a jovem, alisando o ventre com a mão
direita. O meu mundo é outro; o meu mundo é o dos nobres, sem dúvida, mas
aquele a que pertenço está muito para além deste, do de Barcelos, mais ainda do
de Pombeiro para onde vou viver, como sabes, logo a seguir ao casamento. Talvez
já amanhã. E eu também vou? Falei há dias com o senhor conde e ele não se
importa que vás comigo. Pediu mesmo que te levasse. Fico contente com isso,
senhora.
Através da fresta da janela, de
cabeça esticada acima do ombro da jovem nubente, Briolanja Mendes observava com
espanto e curiosidade o movimento dos convidados, ao mesmo tempo que continuava
a ouvir, com igual espanto e muita atenção, os injuriosos comentários de Leonor
Teles. Dos que aqui vês poucos se devem aproveitar. Tenho a certeza de que no fim
deste longo tempo de espera para a cerimónia e para o jantar, sobretudo para o
jantar, já eles disseram mal da corte e do rei, do senhor conde, de mim e da
minha família provavelmente e, muito provavelmente, bem do meu futuro marido e
da família dele. Não suporto esta gente, Briolanja. Enoja-me! Odeio-a! Juro-te
que a odeio! Concluído o discurso com esta alucinada e satânica invectiva, a
jovem cerrou os dentes e, com desprezo e força, voltou a fechar a janela. Que
venha um raio e os reduza a cinzas, desabafou no mesmo instante, para logo
acrescentar num tom de voz quase inaudível: a eles e a João Lourenço. Assustada,
Briolanja benzeu-se.
A
essa hora, João Lourenço Cunha procedia em casa de uma família amiga de seus
pais, situada no extremo da vila, aos últimos retoques da sua feia aparência. E
nem a qualidade dos tecidos da indumentária, nem a talha inspirada nos últimos
costumes italianos, muito menos o elogio dos amigos e parentes próximos à
natureza do seu aspecto excepcionalmente melhorado conseguiam disfarçar a
deselegância física do fidalgo. De qualquer maneira, distinto ou abrutalhado,
bonito ou feio, a verdade é que João Lourenço estava prestes a tornar-se no
homem mais invejado da Beira e de Trás-os-Montes não só pelo facto de vir a
acrescentar ao seu abastado dote um outro de valor considerável mas também, e
sobretudo, pela circunstância de passar a ter à disposição, já nessa noite e
talvez para a vida inteira, a mulher que todos gostariam de ter. À uma da tarde
em ponto, altura em que começou a levantar-se uma brisa fresca e cortante,
Leonor Teles chegava à igreja numa luxuosa liteira conduzida por quatro homens,
todos feios, todos brutos, de tronco largo, ombros espessos e braços fortes.
Eram os homens mais corpulentos de Barcelos, e foi exactamente por isso que o
conde os escolheu, receando que outros de melhor figura mas menor porte não conseguissem
aguentar o peso do fardo e a distância do percurso.
Mandava a tradição, muito
respeitada em terras da Beira, que à saída do lar a noiva se deixasse envolver
numa fingida cena de violência, com os parentes e amigos a puxarem -na do
interior da casa para a levarem depois em festiva procissão até à igreja. Assim
aconteceu com Leonor. O ritual cumpriu-se, exerceu-se o hábito e respeitou-se a
memória, só não se observou o interesse da nubente na participação do costume
em que ela se permitisse explodir numa festa de alegria e felicidade. Tão
grande era a sua cruz, tamanhas a dor e a tristeza, que nem uma palavra
pronunciou ou um sorriso desprendeu durante ou depois do gracejo, excepto
quando o rapaz que haveria de seguir à frente da procissão, transportando o
fuso e a roca cheia de linho, se curvou com exagerada reverência à sua entrada
na liteira. Aí sim, Leonor Teles abriu-se num largo sorriso e disse qualquer
coisa que ninguém ouviu ou percebeu. Nem o rapaz, certamente». In
José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN
978-989-555-113-2.
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