«(…) Igualmente aplaudido foi o
conteúdo da carta régia em que Fernando I ordenava ao juiz de Coimbra que
examinasse os privilégios da Universidade e os fizesse respeitar, atribuindo ao
conservador da escola, noutro passo do diploma, a responsabilidade por toda a
legislação cível e criminal. Mas se em relação a este assunto os lentes
manifestaram total concordância já o mesmo não se poderá dizer quanto ao teor
de uma outra carta, com data de Julho desse ano, por via da qual o rei proibia
o alcaide de Coimbra de apreender aos estudantes e aos seus ovençais as bestas
que transportavam os alimentos que lhes eram destinados. Para os lentes, talvez
para a maioria, esta medida comportava sérios perigos, designadamente o da
perda de influência e autoridade do alcaide de Coimbra.
De tudo ou de quase tudo se
falou, portanto, ao longo dessa manhã outonal, soalheira e fria. E só mesmo um
insólito acontecimento, inabitual em espaços onde por qualquer motivo se
concentrasse a nobreza e o clero, alterou o quadro em que se celebrava o tempo
de espera pelo início do casamento. Faltava pouco para o meio-dia quando, sem
que nada o fizesse prever, irrompeu do grupo dos populares um homem aos vivas a
el-rei de Portugal, certamente convencido de que estaria ali o monarca Fernando
I. Quem é o desgraçado?, alguém perguntou, em alvoroço, no meio da selecta
multidão. Afastem o desgraçado, pediu, assustada, a dama que fazia parelha com
o tabelião, amigo do conde. O desgraçado era o maluco de Barcelos, um homem
magro de rosto e de corpo, vesgo do olho direito, descalço, de barba crescida e
cabelos desgrenhados, coberto apenas por um velho tabardo aguadeiro, oferecido com
certeza, e há muito tempo, por alguma criatura piedosa da terra ou por alguém
de posses que por lá tenha passado.
A princípio, a generalidade dos
convidados não atribuiu demasiada importância ao pobre, muitos até desviaram os
olhos, tal o aspecto sebento e miserável dele, e só mesmo quando dois criados
de João Afonso Telo o foram levar para longe e à força bruta é que os convivas
deram atenção, rindo uns e gritando outros palavras de incentivo aos
agressores: dêem nele, dêem nele. E tanto lhe deram que o homem, cujo nome e descendência
todos ignoravam em Barcelos, ficou estendido no lamaçal, gemendo de dores e de
frio.
Dentro da casa, entretanto, nos
confortáveis aposentos que lhe serviram de suave pouso na infância e na
juventude, Leonor Teles continuava rodeada por cinco aias, incluindo Briolanja,
a preparar-se e a deixar-se preparar para a festa do casamento. Para um dia tão
especial vestiu uma fraldilha em tecido de lã muito fino e, por cima dessa
intimíssima peça, umas calças de pano de Lille presas com ligas abaixo do
joelho. Um vestido branco de cambraia bordada a ouro e um manto de veludo
vermelho, vindo directamente da Irlanda, constituíam o resto da indumentária
que lhe tapava as atraentes formas do corpo. Na cabeça enfiou uma touca em escarlata,
da Flandres, a que sobrepôs um véu bordado a ouro, prata e aljôfar. Os sapatos,
que lhe modelavam os pés, eram de salto alto e forma bicuda. A esta luxuosa
vestimenta, Leonor Teles acrescentou, como elementos de adorno, distintos relicários
em ouro e finas pedrarias. E perfumou-se com polvilhos de Chipre.
À medida que o tempo decorria e
todos se impacientavam, ia chegando à câmara da nubente, num crescendo interminável,
o tumulto das vozes dos convidados cada vez em maior número, o insuportável
latido dos cães vadios, o grunhido dos porcos, a estrídula cantata das galinhas
que se revolteavam em alvoroço e medo nas cercanias do terreiro, junto à
lixeira. O barulho era tanto e tamanha a algazarra que a dado momento, quando a
chinfrineira começou a atormentar o já fragilizado estado de espírito de Leonor,
ela dirigiu-se a uma das aias e, com a voz firme e determinada, gritou: fecha-me
a porcaria dessas portadas, que já não posso ouvir a turba. Logo de seguida,
mais calma e quase num sussurro, acrescentou: e ainda não jantaram. Todas
sorriram com a ironia.
Sem perda de tempo, uma das
raparigas foi acender uma série de velas e tochas de sebo para que a câmara
subitamente escurecida fosse iluminada e o trabalho de arranjo da nubente
concluído. E quando o foi enfim, Briolanja Mendes virou-se para a sua admirável
dama, recuou dois passos e, num tom de voz muito suave, disse: está linda,
senhora, muito linda. Que Deus a proteja! Leonor Teles não respondeu
imediatamente. Só depois de reparar a emoção, de se mirar ao espelho de prata pendurado
na parede, de dispensar a presença das outras aias que a ajudaram a vestir-se e
a compor-se, decidiu contestar. Não digas que estou linda, Briolanja. Tu melhor
que ninguém sabes que não posso estar formosa, porque nenhuma mulher o é se não
sentir amor pelo homem que lhe coube em sorte. Vou para o casamento com um
punhal atravessado no peito, de coração coberto de dor e de sangue, pelo que só
eu e Deus sabemos quanto martírio invade a minha pobre alma neste trágico momento...»
In
José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN
978-989-555-113-2.
Cortesia de OdoLivro/JDACT