segunda-feira, 7 de maio de 2018

A Solidão dos Números Primos. Paolo Giordano. «Eric chamou-a de novo, Alice não respondeu. Enquanto estivesse ali em cima o nevoeiro escondê-la-ia»

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O Anjo da Neve
«(…) Não se via um palmo à frente dos olhos quanto mais sol que rebenta as pedras. Estava tudo branco, só branco, em cima, em baixo, de lado. Era como estar envolvidos num lençol. Era o exacto oposto da escuridão, mas Alice tinha medo na mesma. Deslizou para a beira da pista de esqui em busca de um montinho de neve fresca onde pudesse aliviar-se. Os seus intestinos fizeram um ruído de máquina de lavar a louça a entrar em acção. Voltou-se para trás. Já não via Giuliana, por isso, Giuliana não a podia ver a ela- Subiu a encosta alguns metros, pondo os esquis em espinha de peixe, como a obrigava a fazer o pai quando pôs na cabeça que tinha que a ensinar a esquiar. Para cima e para baixo na pista de esqui infantil, trinta a quarenta vezes num só dia. Subia em passo de escadinhas e descia em estilo limpa-neve, pois que comprar o passe de esqui para uma só pista era desperdício de dinheiro, sem contar que, deste modo, também treinava as pernas.
Alice desapertou os esquis e deu mais alguns passos. Enterrou as botas até meio da barriga das pernas. Finalmente estava sentada. Deixou de reter a respiração e relaxou os músculos. Uma agradável descarga eléctrica propagou-se pelo corpo todo para depois se aninhar nas pontas dos pés. Deve ter sido o leite, seguramente foi o leite. Deve ter sido também por ter as nádegas quase congeladas por estar sentada na neve a mais de dois mil metros de altitude. Nunca tal lhe acontecera, pelo menos que ela recordasse. Nunca, nem uma vez. Aliviou-se pernas abaixo. Não chichi. Não só. Alice borrou-se toda, às nove em ponto de uma manhã de Janeiro. Borrou-se nas cuecas e nem sequer se apercebeu. Pelo menos até ouvir a voz de Eric vinda de um ponto indefinido dentro do banco de nevoeiro, a chamar por ela. Levantou-se num ápice e foi nesse momento que sentiu algo de pesado nas entrepernas das calças. Instintivamente tocou no rabo, mas as luvas tiraram-lhe a sensibilidade. De qualquer modo, não era preciso, pois já percebera tudo. E agora, que faço, questionou-se.
Eric chamou-a de novo, Alice não respondeu. Enquanto estivesse ali em cima o nevoeiro escondê-la-ia. Podia baixar as calças do fato de esqui e limpar-se com neve, ou então, ir ter com Eric e segredar-lhe ao ouvido o que lhe acontecera. Podia dizer-lhe que tinha de regressar à aldeia pois estava a doer-lhe o joelho. Ou então, borrifar-se para o sucedido e esquiar mesmo naquele estado, tendo o cuidado de ser sempre a última da fila. Mas, ao invés, deixou-se simplesmente ficar ali, atenta a não mexer um só músculo, protegida pelo nevoeiro. Eric chamou-a pela terceira vez. Mais alto». In Paolo Giordano, A Solidão dos Números Primos, 2008, tradução de José Serra, Bertrand Editora, Lisboa, 2013, ISBN 978-972-251-834-5.

Cortesia de BertrandE/JDACT