jdact
Um
fundamento filosófico
«(…)
Cícero, na sua obra filosófica Dos Deveres, concordando com os
peripatéticos e com os estóicos, considera o casal como o grupo animal original
do qual derivam todos os grupos maiores: a sociedade reside primeiro na união conjugal,
e depois nas crianças. O casal e os seus filhos formam a unidade de base que
serve para fazer nascer a cidade e o Estado. O casamento é, por assim dizer, o
viveiro do Estado, e o seu objectivo é gerar crianças, liberorum creandorum
causa, de acordo com a fórmula ritual. No princípio de De inuentione,
Cicero, interrogando-se acerca da origem da eloquência, descreve o estado
natural antes da civilização, quando os homens erravam ao acaso pelos campos à
maneira dos animais e quando ninguém vira ainda casamentos legítimos: estes são
um critério decisivo de civilização, e Cícero liga todo o desenvolvimento
social à união dos dois sexos no seio da instituição do casamento.
Esse
tema é igualmente tratado por Lucrécio num texto poético que mostra que o
surgimento da civilização humana põe fim ao reino das pulsões sexuais cegas e
incontroladas, canalizando-as pela instituição do casamento. Vénus juntava
os corpos dos amantes nos bosques; com efeito, cada mulher cedia quer a um
desejo recíproco, quer à força violenta do homem e à sua paixão imperiosa
[...]. Antes da civilização, os seres humanos eram governados pelas suas
pulsões (cupido et libido); conheciam apenas copulações fortuitas, à
semelhança dos animais. A civilização traz consigo a vida em comum: a mulher,
pelos laços do casamento, torna-se propriedade de um único esposo. Este
fundamento filosófico do casamento é ridicularizado, com humor, mas também com
uma certa provocação, pelo poeta elegíaco Ovídio, que apresenta, pelo contrário,
o primeiro acto sexual como o meio de civilizar os homens primitivos selvagens
e que insiste no prazer sentido pelos animais fêmeas ao copularem: no início
havia uma massa confusa de coisas, sem qualquer ordem [...]. O género humano
errava, solitário, pelos campos [...] e durante muito tempo os homens
ignoravam-se uns aos outros. Diz-se que foi a voluptuosidade fagueira que lhes
suavizou as almas bravias; um homem e uma mulher encontraram-se num mesmo lugar;
o que ambos fizeram aprenderam por si mesmos, sem qualquer mestre; Vénus realizou
o seu doce ofício sem qualquer manual.
Não é o casamento que traz a civilização
aos olhos de Ovídio, mas sim a paixão sexual, o que Lucrécio, por seu turno, associa
ao estado primitivo do homem selvagem. Esta passagem de Ovídio contém algumas
evidentes reminiscências do poema de Lucrécio, mas sustentando deliberadamente o
oposto da demonstração epicurista a propósito da natureza do amor. Lucrécio
pinta a paixão sexual como uma força destrutiva que é preciso evitar a qualquer
preço, porque impede o homem de atingir a ataraxia; ele aceita o acto sexual unicamente
quando este é necessário para a reprodução. Virgílio, igualmente, mostra no conjunto
da sua obra poética que o desejo sexual conduz a um comportamento irracional,
violento, que leva à loucura furiosa (furor) e à raiva (rabies). A
Vénus ovidiana, pelo contrário, tem o apanágio da doçura e constitui-se como o agente
da concórdia entre os amantes. O acto sexual é o melhor meio de apaziguar uma amante
ciumenta e irritada. Não são as palavras que podem dissipar uma querela de apaixonados,
mas os prazeres de Vénus, gaudia Veneris. Ovídio parece
apresentar aqui, de maneira séria, uma doutrina científica segundo a qual o acto
sexual é eficaz para trazer a paz aos dois parceiros, mas, na realidade, o jogo
intertextual com Lucrécio e Virgílio, que demonstram o contrário, ilustra o carácter
incongruente e discrepante das suas afirmações, característica da sua escrita poética.
Apesar
deste jogo poético subversivo, o casamento surge habitualmente como uma instituição
fundamental sobre a qual assenta o equilíbrio da sociedade romana. O casamento romano
é ele próprio baseado na noção de societas, comunidade de património e
de vida entre duas pessoas de sexo oposto. Esta parceria entre o homem e a mulher
exclui a poligamia, que parece recolher um julgamento negativo, ainda que raros
sejam os autores que a ela façam alusão. A poligamia é uma instituição própria dos
bárbaros. É Salústio quem exprime mais claramente o seu desprezo pelas sociedades
poligâmicas dos númidas e dos mouros, nas quais nenhuma esposa ocupa a posição de
parceira igual: [...] cada um, de acordo com os seus recursos, tem o maior número
de esposas possível, uns dez, outros mais, e os reis mais ainda. Assim, o espírito
é assediado pela quantidade; nenhuma obtém o estatuto de associada, todas são igualmente
sem valor. Já Tácito faz o elogio dos casamentos dos germanos, porque estes
últimos, quase únicos entre os bárbaros, se contentam em ter apenas uma esposa,
com a excepção de alguns que, não por sensualidade (libido), mas devido à
sua nobreza, são invadidos por numerosas propostas de casamento». In
Géraldine Puccini-Delbey, A vida sexual na Roma Antiga, 2007, Edições Texto e
Grafia, 2010, Lisboa, ISBN 978-989-828-515-7.
Cortesia
de TGrafia/JDACT