A finalidade da procriação
«(…) O matrimonium romano
é uma instituição que implica uma mãe (mater). Devemos a Benveniste o
ter mostrado a singularidade do nome latino do casamento (matrimonium), que
significa condição legal de mater: O casamento é o estado de mãe ao qual
se destina a rapariga. A ideia que está implícita na palavra é a de que um
homem se casa com uma mulher, in matrimonium ducere, para dela obter filhos,
segundo a formulação legal. Ele pode ser dissolvido quer pela morte de
um dos esposos, quer por separação (repudiação, divórcio). Uma das causas mais
frequentes de repudiação de uma esposa pelo marido, a partir do século III
a.C., é a sua esterilidade ou uma insuficiente fertilidade.
A mulher é, portanto, considerada
pelos homens na sua capacidade para ser mãe. A antropóloga Françoise Héritier
estima que todos somos submetidos a um mesmo modelo de representação que vem da
nossa pré-história e ao qual chamo modelo arcaico dominante. Os homens têm
necessidade de se apropriarem das mulheres para terem descendência e,
sobretudo, uma descendência semelhante a eles, isto é, filhos homens. Portanto,
elas foram tidas como um recurso. Neste ponto, nada distingue Roma das outras
sociedades antigas, nem, de forma mais geral, da quase totalidade das
sociedades humanas antes da emancipação das mulheres no mundo industrial
contemporâneo. O que mais merece atenção, para além de todas as generalidades
sociológicas que podem ser inspiradas pelo tema da mulher-mãe, é um facto de
ordem institucional que, ele sim,. é original: o acontecimento que faz uma
mulher aceder ao estatuto reconhecido pela sociedade de materfamilias já
não é o parto, mas sim o casamento. Yan Thomas sublinha igualmente que o
direito, forjando, para designar a esposa legítima, o nome materfamilias,
constrói a maternidade da mulher como um estatuto que se realiza no único facto
de estar unida a um paterfamilias: o código das dignidades
institucionais desnaturaliza a maternidade para a absorver, ideal e
ficticiamente, no estado de esposa de um cidadão maior. É a razão pela qual se
diz mãe de família até mesmo de uma esposa que ainda não teve filhos.
Os romanos consideram
convencionalmente o casamento como uma instituição necessária para o nascimento
de filhos legítimos. Uma mulher é dada a um homem com o único intuito de
procriar, de continuar a linhagem do esposo com descendentes legítimos. É este
objectivo que define a mulher como uma esposa legal e a união como um
casamento. No enunciado deste objectivo, é o ponto de vista masculino que
predomina, claro e pragmático. A cidade e a sua sobrevivência precisam que os
cidadãos se casem e produzam novos cidadãos. A satisfação do instinto sexual
não é, portanto, a razão de ser do casamento, porque os homens podem
licitamente satisfazer os seus desejos físicos sem recorrer ao casamento. A
sexualidade conjugal tem como única finalidade a procriação. No século primeiro
da nossa era, uma mulher a que se costuma chamar Túria, mas cujo nome é
na verdade desconhecido, ilustra bastante bem a importância deste modelo
tradicional do casamento nas mentalidades romanas.
No elogio fúnebre que lhe dirige
o esposo, este recorda que ela lhe propôs o divórcio dado o casal ser estéril,
mas que a isso ele opôs uma recusa veemente, em nome da fidelidade conjugal que
os ligava indefectivelmente. Se um casal falha na tarefa de produzir filhos, a
esterilidade é, em geral, imputada à esposa, e o marido pode unilateralmente
divorciar-se. Quando Apuleio se casa com a rica viúva Pudentila em Oea, em
meados do século segundo da nossa era, a finalidade do casamento ainda não
mudou. O casal comporta-se plenamente de acordo com as normas romanas
tradicionais, casando-se não ad lubidinem, não por sensualidade,
mas com o intuito de ter filhos. Procurando justificar o facto de se ter casado
com Pudentila no campo, ele lembra o valor simbólico de um casamento realizado
no campo, num solo fértil, enquanto a cidade representa um lugar estéril.
Que aquela que deve ser mãe (mater
futura) se case no próprio regaço maternal, por entre o trigo maduro, na
gleba fértil [...].
A sexualidade conjugal está,
assim, indissociavelmente ligada à procriação. Todavia, se não pode rimar com
paixão, mas com razão e dever, ela pode ocupar um lugar importante em Roma. Com
efeito, a actividade sexual no interior do casamento é natural, necessária e
casta; possui um carácter sagrado. As esposas respeitáveis devem aceitá-la. Os
maridos devem cumpri-la para perpetuar a raça, mesmo que lhe ofereça poucos
atractivos.
Apesar
do seu propósito procriador, o casamento romano existe juridicamente mesmo que
não seja consumado. A realização do acto sexual não é necessária à sua
existência, como Ulpiano e muitos outros juristas confirmam: não é o facto
de se dormir em conjunto que faz o casamento, mas sim o consentimento. Uma
outra razão, de ordem médica, pode justificar a necessidade de casamento. Por
vezes, as relações sexuais permitem a recuperação da saúde. Pudentila, mulher
de Apuleio, é disso um exemplo típico. No seguimento de um período de viuvez de
catorze anos, Pudentila tornou-se, nas palavras de Apuleio, letárgica,
devido a uma falta demasiado longa de relações sexuais, às quais ela estava
bastante acostumada aquando do seu primeiro casamento. Pudentila sofre
visivelmente de histeria, ainda que Apuleio não nomeie a doença exacta da
esposa. O seu casamento com Apuleio é, portanto, um antídoto para os seus
problemas de saúde femininos. Os médicos antigos pensam, de facto, que a
abstinência sexual involuntária de uma mulher, se for prolongada, pode acarretar
complicações físicas e, em casos extremos, uma sufocação histérica, à qual os
latinos chamam doença da vulva (uuluae morbus),para não esquecer a
epilepsias». In Géraldine Puccini-Delbey, A vida sexual na Roma Antiga, 2007,
Edições Texto e Grafia, 2010, Lisboa, ISBN 978-989-828-515-7.
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