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Estava mal informado o tio Joaquim da Teresa, no artigo confissão. Angélica
Florinda não exercitava tão louváveis espiritualidades. Às festas ia; mas, fora
da quaresma e jubileus, a rapariga parece que andava armazenando fazenda
pecaminosa que assoalhasse no confessionário. Angélica do picoto, imitante a
qualquer donzela das que pisam tapetes e têm segredos com a lua, sentia no
íntimo peito uma tristeza alegre e uma alegria triste, um bem de que padecia e
um mal que a consolava, enfim, um mal que a recreava e um bem que a afligia:
tudo isto cifra na saudade, como S. Bernardo a definiu, e depois do santo
muitos à semelhança dele, salvante a santidade. A saudade de Angélica tinha
sete anos de coração, enraizara-se, era dor sem esperança de remédio.
Quem
no diria, vendo-a florir, nutrir, folgar honestamente? Pois violentava-se a
jovem. A natureza aformosentava-a, de força e contra vontade dela; as cores
salubérrimas eram dotes da juvenil matéria que não tinha satisfações que dar à
alma; folgava-se com as suas amigas, cantando o S. João ou outras cantilenas assim
místicas, é que a briosa rapariga forcejava por esconder a sua mágoa dos outros
e de si, delindo-a da lembrança. A saudade, pois, de Angélica Florinda devia de
ser ruim, que assim lhe dava pejo de que lha soubessem. Ai!, se era! Ainda que
deus lha perdoasse, e mandasse anjos a publicar na terra o indulto da pecadora,
o mundo não lhe perdoaria. Porque ela, a querida do juiz ordinário, do alferes
de milícias, do juiz dos órfãos, do boticário, do capitão-mor, do escrivão das
sisas, do mestre-escola... Amava... Um frade bento!
Mas este
frade não era algum dos dois que andavam perdidos por ela. Era um terceiro
frade de S. Miguel de refojos. Três! Que muito, se seria natural amá-la o
convento todo! Amá-la toda a congregação de S. Bento! Amarem-na S. Pacómio, S.
António abade, S. Jerónimo, o escarnado velho que vencia a custo as
voluptuárias lembranças das romanas! Aquilo era mulher de prova! Não conhecia o
diabo semelhante tipo, quando o senhor lhe permitiu atanazar o inquebrantável Job.
Era mostrar-lhe a rapariga... E dispensá-lo da lepra. Era dar-lhe umas
comichões de alma que não se coçam com telha, o diabo, além de mau, é tolo, e
às vezes velho parvo, Camões, o sábio Francisco Manuel de meio, e primeiro que
ele António Sousa Macedo, e mais antigo Isidoro Barreira, e mais ainda Manuel
Severim Faria, e mais velho que todos Duarte Nunes Leão. Parei neste,
prometendo esquadrinhar quem ensinou Duarte Nunes. Ultimamente encontrei S.
Bernardo. Mais tarde, se deus quiser, direi onde o santo abade da Claraval
achou a galantaria, que se me antolha ser antediluviana.
Como lhe
chama frei João Ceita. Anda tanta gente a querer perder-se e infernar-se com as
mulheres de certo feitio, e o parvo a dormir, e elas a fugirem da tentação! Entendam-no
lá! Há uma só explicação que o salva e abona; e é que modernamente os vícios
são tantos, em comparação dos antigos, que hoje em dia alguns dão mais trabalho
a conseguir que propriamente as virtudes opostas. Conservando-se satanás
neutral, a honestidade é a mais barata das granjearias. Bem no dizem os
filósofos: a mulher emancipou-se. A formosa, creio que sim. As outras, duvido. Figura-se-me
que ainda colabora com elas coisa de tentação que as ala ao fastígio donde
formosas e feias se despenham. O discrime está em que umas avoejam lá com asas
do céu, outras vão de gatinhas ou às cavaleiras do diabo». In Camilo Castelo Branco, A Bruxa do Monte
Córdova, 1867, Projecto Livro Livre, Nº 212, Poeteiro Editor, 2014.
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