Sobre a nudez forte da verdade. O manto
diáfano da fantasia
«(…) Baixei a cabeça, murmurei: e
ainda nós não padecemos bastante... Tem a Titi razão. Que se não metesse com
saias! Ela ergueu-se, deu as graças ao Senhor. Eu fui para o meu quarto, fechei-me
lá, a tremer, sentindo ainda, regeladas e ameaçadoras, as palavras da Titi,
para quem os homens acabavam quando se metiam com saias. Também eu me metera
com saias, em Coimbra, no Terreiro da Erva! Ali, no meu baú, tinha eu
documentos do meu pecado, a fotografia da Teresa dos Quinze, uma fita de seda,
e uma carta dela, a mais doce, em que me chamava único afecto da sua alma e me
pedia dezoito tostões! Eu cozera estas dentro do forro de um colete de pano,
receando as incessantes rebuscas da Titi, por entre a minha roupa íntima. Mas
lá estavam, no baú de que ela guardava a chave, dentro do colete, fazendo uma
dureza de cartão que qualquer dia poderiam palpar os seus dedos desconfiados...
E eu acabava logo para Titi! Abri devagarinho o baú, descosi o forro, tirei a
carta deliciosa da Teresa, a fita que conservara o aroma da sua pele, e a sua
fotografia, de mantilha. Na pedra da varanda, sem piedade, queimei tudo,
amabilidades e feições; e sacudi desesperadamente para o saguão as cinzas da
minha ternura.
Nessa semana não ousei voltar à
Rua da Fé. Depois, um dia que chuviscava, fui lá, ao escurecer, encolhido sob o
meu guarda-chuva. Um vizinho, vendo-me espreitar de longe as janelas negras e
mortas do casebre, disse-me que o Godinho, coitado, fora para o hospital numa
maca. Desci triste, ao comprido das grades do Passeio. E, no crepúsculo húmido,
tendo roçado bruscamente por outro guarda-chuva, ouvi de repente o meu nome de
Coimbra, lançado com alegria. Oh, Raposão! Era o Silvério, por alcunha o
Rinchão, meu condiscípulo, e companheiro de casa das Pimentas. Estivera
passando esse mês no Alentejo, com seu tio, ricaço ilustre, o barão de
Alconchel. E agora, de volta, ia ver uma Ernestina, rapariguita loura, que
morava no Salitre, numa casa cor-de-rosa, com roseirinhas à varanda. Queres tu
vir cá um bocado, ó Raposão? Está lá outra rapariga bonita, a Adélia... Tu não
conheces a Adélia? Então, que diabo, vem ver a Adélia... É um mulherão! Era um
domingo, noite de partida da Titi; eu devia recolher religiosamente às oito
horas. Cocei a barba, indeciso. O Rinchão falou da brancura dos braços da
Adélia; e eu comecei a caminhar ao lado do Rinchão, enfiando as luvas pretas. Munidos
de um cartucho de pastéis e de uma garrafa de Madeira, encontrámos a Ernestina
a coser um elástico nas suas botinas de duraque. E a Adélia, estendida num sofá,
de chambre e em saia branca, com os chinelos caídos no tapete, fumava um
cigarro lânguido. Eu sentei-me ao lado dela, comovido e mono, com o meu
guarda-chuva entre os joelhos. Só quando o Silvério e a Ernestina correram à
cozinha, abraçados, a buscar copos para o Madeira, ousei perguntar à Adélia,
corando: então a menina de onde é?
E eu, novamente acanhado, só pude
gaguejar que era tristonho aquele tempo de chuva. Ela pediu-me outro cigarro,
cortesmente, dizendo-me, o cavalheiro. Apreciei estes modos. As mangas largas
do seu roupão, escorregando, descobriam braços tão brancos e macios, que entre
eles a morte mesma deveria ser deleitosa. Fui eu que lhe ofereci o prato, onde
a Ernestina colocara os pastéis. Ela quis saber o meu nome. Tinha um sobrinho
que também chamava Teodorico; e isto foi como um fio subtil e forte que veio,
do seu coração, enrodilhar-se no meu. Por que é que o cavalheiro não põe o
guarda-chuva ali a um canto?, disse, rindo. O brilho picante dos seus dentinhos
miúdos fez desabrochar, dentro em mim, uma flor de madrigal. É para não me
tirar daqui de ao pé da menina nem um instantinho que seja. Ela fez-me uma
cócega lenta no pescoço. Eu, aboborado de gozo bebi o resto do Madeira que ela
deixara no cálice. A Ernestina, poética, e cantando o fado, aninhou-se nos
joelhos do Rinchão. Então a Adélia, revirando-se languidamente, puxou-me a face,
e os meus lábios encontraram os seus no beijo mais sério, mais sentido, mais
profundo que até aí abalara o meu ser.
Nesse doce instante, um relógio
medonho, com o mostrador fingindo uma face de lua, e que parecia espreitar-me
de sobre o mármore de uma mesa de mogno, de entre dois vasos sem flores,
começou a dar dez horas, fanhoso, irónico, pachorrento. Jesus! Era a hora do
chá em casa da Titi! Com que terror eu trepei, esbaforido, sem mesmo abrir o
guarda-chuva, as vielas escuras e infindáveis que levam ao Campo de Santana! Em
casa, nem tirei as botas enlameadas. Enfiei pela sala; e vi logo, lá ao fundo,
no sofá de balbuciei: Titi... Mas já ela gritava, esverdinhada de cólera,
sacudindo os punhos: relaxações em minha casa não admito! Quem quiser viver
aqui há-de estar às horas que eu marco! Lá deboches e porcarias, não, enquanto
eu for viva! E quem não lhe agradar, rua! Sob a rajada estridente da indignação
da senhora Patrocínio, padre Pinheiro e o tabelião Justiço tinham dobrado a
cabeça, embaçados, o doutor Margaride, para apreciar conscienciosamente a minha
culpa, puxou o seu pesado relógio de ouro. E foi o bom Casimiro que interveio,
como sacerdote, como procurador, influente e suave. Dona Patrocínio tem razão,
tem muita razão em querer ordem em casa... Mas talvez o nosso Teodorico se
tivesse demorado um pouco mais no Martinho, a ouvir falar de estudos, de
compêndios...
Exclamei
amargamente: nem isso, padre Casimiro! Nem no Martinho estive! Sabe onde estive?
No convento da Encarnação! É verdade, encontrei um condiscípulo meu, que ia lá
buscar a irmã. Hoje era festa, a irmã tinha ido passar o dia com uma tia, uma
comendadeira... Estivermos à espera, a passear no pátio... A irmã vai casar,
ele andou a contar-me do noivo, e do enxoval, e do apaixonada que ela está...
Eu morto por me safar, mas com cerimónia do rapaz, que sobrinho do barão de
Alconchel... E ele zás, zás, a falar da irmã, e do namoro, e das cartas... A
tia Patrocínio uivou de furor. Olha que conversa! Que porcaria de conversa! Que
indecente conversa para o pátio de uma casa de religião! Cala-te, alma perdida,
que até devias ter vergonha!... E fique entendendo! Para outra vez que venha a
estas horas, não me entra em casa! Fica na rua, como um cão…» In
Eça de Queirós, A Relíquia, 1887, Typographia de A. J. da Silva Teixeira,
Porto, 1887, Editora Livros do Brasil, Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN
978-989-711-008-5.
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