Sobre a nudez forte da verdade. O manto
diáfano da fantasia
«(…) Então o doutor Margaride
estendeu a mão pacificadora e solene: está tudo explicado! O nosso Teodorico
foi imprudente, mas o sítio onde esteve é respeitável... E eu conheço o barão
de Alconchel. É um cavalheiro da maior circunspecção, e um dos mais abastados
do Alentejo... Talvez mesmo um dos mais ricos proprietários de Portugal... O mais
rico, direi!... Mesmo lá fora não haverá fortuna territorial que lhe exceda.
Nem que se lhe compare!... Só em porcos! Só em cortiça! Centenares de contos!
Milhões! Erguera-se; o seu vozeirão empolado rolava serras de ouro. E o bom Casimiro
murmurava, ao meu lado, com brandura: tome o seu chazinho, Teodorico, vá
tomando o seu chazinho. E creia que a tia não deseja senão o seu bem... Puxei,
com a mão a tremer, a minha chávena de chá; e, remexendo desfalecidamente o
fundo de açúcar, pensava em abandonar para sempre a casa daquela velha medonha,
que assim me ultrajava diante da Magistratura e da Igreja, sem consideração
pela barba que me começava a nascer, forte, respeitável e negra.
Mas, aos domingos, o chá era
servido nas pratas do comendador G. Godinho. Eu via-as, maciças e
resplandecentes, diante de mim; o grande bule, terminando em bico de pato; o
açucareiro cuja asa tinha a forma de uma cobra assanhada; e o paliteiro gentil,
em figura de macho trotando sob os seus alforjes. E tudo pertença à Titi. Que
rica que era a Titi! Era necessário ser bom, agradar sempre à Titi! Por isso,
mais tarde, quando ela penetrou no oratório para cumprir o terço, já eu lá
estava, de rojos, gemendo, martelando o peito, e suplicando ao Cristo de ouro
que me perdoasse ter ofendido a Titi. Um dia enfim cheguei a Lisboa, com as
minhas cartas de doutor metidas num canudo de lata. A Titi examinou-as
reverente, achando um sabor eclesiástico As linhas em latim, às paramentosas
fitas vermelhas, e ao selo dentro do seu relicário. Está bom, disse ela, estás
doutor. A Deus Nosso Senhor o deves; vê não lhe faltes... Corri logo ao
oratório, com o canudo na mão, agradecer ao Cristo de ouro o meu glorioso grau
de bacharel. Na manhã seguinte, estando ao espelho, a espontar a barba que, agora,
tinha cerrada e negra, o padre Casimiro entrou-me pelo quarto, risonho e a
esfregar as mãos.
Boa nova vos trago aqui, senhor doutor
Teodorico! E depois de me acaridar, segundo o seu afectuoso costume, com palmadinhas
doces nos rins, o santo procurador revelou-me que a Titi, satisfeita comigo,
decidira comprar-me um cavalo para eu dar honestos passeios, e espairecer por
Lisboa. Um cavalo! Oh, padre Casimiro! Um cavalo. E além disso, não querendo
que o seu sobrinho, já barbado, já letrado, sofresse um vexame, por lhe faltar
às vezes um troco para deitar na salva de Nossa Senhora do Rosário, a Titi
estabelecia-me uma mesada de três moedas. Abracei com calor o padre Casimiro. E
desejei saber se a amorável intenção da Titi era que eu não tivesse outra
ocupação, além de cavalgar por Lisboa, e lançar pratinhas na salva de Nossa
Senhora. Olhe, Teodorico, eu parece-me que a Titi não quer que você tenha outro
mister, senão temer a Deus... O que lhe digo é que o amigo vai passá-la boa e
regalada... E agora, ande, vá-lhe lá dentro agradecer, e diga-lhe uma cousinha
mimosa.
Na saleta, onde brilhavam pelas
paredes os feitos piedosos do patriarca São José, a Titi, sentada a um canto do
sofá de riscadinho, fazia meia, com um xale de Tonquim pelos ombros. Titi,
murmurei eu encolhido, venho aqui agradecer... Está bom, vai com Deus. Então,
devotamente, beijei-lhe a franja do xale. A Titi gostou. Eu fui com Deus. Começou
daí, farta e regalada, a minha existência de sobrinho da senhora Patrocínio das
Neves. As oito horas, pontualmente, vestido de preto, ia com a Titi à Igreja de
Santana, ouvir a missa do padre Pinheiro. Depois do almoço, tendo pedido
licença à Titi, e rezadas no oratório três Gloria Patri contra as tentações,
saía a cavalo, de calça clara. Quase sempre a Titi me dava alguma incumbência
beata: passar em São Domingos, e dizer a oração pelos três santos mártires do
Japão; entrar na Conceição Velha, e fazer o acto de desagravo pelo Sagrado Coração
de Jesus...
E
eu receava tanto desagradar-lhe, que nunca deixava de dar estes ternos recados,
que ela mandava à casa do Senhor. Mas era este o momento desagradável do meu
dia: às vezes, ao sair, sorrateiro, do portão da igreja, topava com algum
condiscípulo republicano, dos que me acompanhavam em Coimbra, nas tardes de
procissão, chasqueando o Senhor da Cana-Verde. Oh, Raposão! Pois tu agora... Eu
negava, vexado: ora essa! Não me faltava mais nada! Sou mesmo lá de carolices...
Qual! Entrei aqui por causa de uma rapariga... Adeus, tenho a égua à espera. Montava,
e de luva preta, a perna bem colada à sela, um botãozinho de camélia no peito,
ia caracolando, em ócio e luxo, até ao Largo do Loreto. Outras vezes deixava a
égua no Arco do Bandeira, e gozava uma manhã regalada no bilhar do Montanha. Antes
do jantar, em chinelas, no oratório com a Titi, eu fazia a jaculatória a São
José, aio de Jesus, custódio de Maria e amorosíssimo patriarca. À mesa,
adornada apenas por compoteiras de doce de calda em torno de uma travessa de
aletria, eu contava à Titi o meu passeio, as igrejas em que me deleitara, e
quais os altares alumiados. A Vicência escutava com devoção, perfilada no seu
lugar costumado, entre as duas janelas, onde um retrato do nosso santo padre
Pio IX enchia a tira de parede verde, tendo por baixo, pendente de um cordão,
um velho óculo de alcance, relíquia do comendador G. Godinho. Depois do café a
Titi, lentamente, cruzava os braços; e o seu carão sumia-se, dormente e pesado,
na sombra do lenço roxo». In Eça de Queirós, A Relíquia, 1887,
Typographia de A. J. da Silva Teixeira, Porto, 1887, Editora Livros do Brasil,
Obras de Eça de Queirós, 2011, ISBN 978-989-711-008-5.
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