A
Mulher que Amou Jesus
«(…) Depois da refeição, na
tranquilidade do entardecer e enquanto esperava que o vinagre aliviasse as
dores de Rute, a família começou a recitar as escrituras. Tinha de ser feito de
memória, pois era proibido ler. Mas quando terminaram de recitar, Rute ainda
estava incomodada. Talvez eu devesse falar com o rabino, disse José.
Talvez ele me permita desatar os nós ou usar um remédio, só desta vez. E
balançou a cabeça. Um dos meninos foi chamar o rabino e, após o que pareceu uma
eternidade, ele surgiu da escuridão próxima à barraca. Deixe-me ver a criança,
disse. Dirigiu-se a Rute e pediu-lhe que abrisse a boca, espiando para
dentro. Em seguida, fechou-a. Não vejo nada demais, murmurou. Mas dói,
disse Rute. Será que não podemos desatar a sacola onde tem o pó?, perguntou
José. Desata com uma mão só?, retrucou o rabino. Não, é um nó forte,
para aguentar durante a viagem. O rabino balançou a cabeça. Então, conhece as
normas, disse. E voltou-se para Rute. Tente ser forte, menina. Já é bem
tarde da noite e não irá demorar tanto até o pôr do sol, amanhã. Olhou
para todos eles. Sinto muito, disse, voltando-se para a saída. E, de
qualquer maneira, mesmo que o remédio estivesse ao alcance, não pode ser usado durante
o Sabá. Parecia triste e sem jeito. Sabe disso, José.
Depois que o rabino saiu, José
veio sentar-se junto à sua filha e segurou a sua mão. Ela fazia uma careta de
dor. Ele olhou para seus olhos e, decidido, levantou-se. Dirigiu-se à sacola e,
calmamente, deliberadamente, desatou os nós. Vou fazer uma oferenda dos meus
pecados para compensar isto, disse. Mas não aguento ficar aqui quieto,
esperando por amanhã. Pegou o remédio e deu-o à Rute. Pouco depois, foram todos
dormir, acomodando-se nas cobertas que tinham sido preparadas. Maria, as suas
primas e Quezia ficaram num dos cantos da barraca e não demorou para que
adormecessem. Com todo o cuidado, ela desamarrara seu cinto, colocando-o junto
ao capote. Tocou-o, como se o protegesse, e dormiu com ele junto à cabeça.
Sorria quando adormeceu. Era
gostoso ter um segredo. E o dia também tinha sido maravilhoso, conhecendo essas
pessoas de Nazaré. Tinha que reconhecer que era divertido ficar por um tempo
longe da família, ser outra pessoa. Ou, quem sabe, talvez não ser outra pessoa,
mas aquela que é. Dormiu profundamente e, quando acordou, os outros já se
tinham levantado. Estavam todos lá fora e ela ainda esfregava os olhos. Rapidamente,
sentou-se, vestiu-se e juntou-se aos outros.
O céu estava limpo e azul; o clarão
da madrugada já tinha desaparecido. Compartilharam de uma refeição leve, de pão
e queijo, sentados em círculo. O brilho do céu e o cheiro doce da manhã
prometiam um dia magnífico. Não é de estranhar que, se o primeiro Sabá foi tão
bonito quanto este, Deus tenha achado que fizera um bom trabalho e tenha ido
descansar, disse Jesus. Mastigava, devagar, um pedaço de pão, e olhava para o
alto, profundamente feliz. Todos concordaram. Parecia respirar-se paz no ar. É
verdade, disse a mãe de Jesus, na sua voz melodiosa. E passou uma cesta
de figos com o gesto gracioso de uma bailarina.
Ela é linda, pensou Maria, mas só
agora é que o percebi. É muito mais bonita que a minha própria mãe. Mas, na
mesma hora, sentiu-se desleal, e mesmo culpada, por tê-lo pensado. O restante
do dia, que tanto pareceu longo quanto curto, passou-se nos prazeres do lazer e
da devoção. Era permitido ficar sentado, conversando; assim como cantar, dar
pequenas caminhadas, alimentar os animais, comer a comida já preparada e gozar
da tranquilidade e sonhar. E havia as orações, a sós ou em grupo, entre as
quais a mais antiga e fundamental era a Shemá: Shemá, ouvi-me! Israel, o Senhor
nosso Deus, o Senhor é Um.
Maria reparou que Jesus estava
sentado debaixo de uma arvorezinha e parecia dormitar. Porém, observando com
mais atenção, percebeu que ele não estava dormindo, mas profundamente
concentrado em alguma coisa, alguma coisa interior. Quando tentava afastar-se,
ele a viu. Já era tarde, ela tinha-o perturbado. Ele acenou para que ela se
aproximasse. Desculpe-me, disse ela. Por quê? Ele não parecia aborrecido
com a sua presença, e sim confuso, sem compreender o motivo para as suas
desculpas. Por me ter intrometido, disse ela. ele sorriu. Estou sentado
aqui, ao ar livre. É impossível alguém se intrometer num lugar público. Mas estava
sozinho, insistiu Maria. Talvez quisesse ficar sozinho. Não, nada disso.
Talvez só estivesse esperando que alguma coisa de interessante acontecesse. Como
o quê, por exemplo? Qualquer coisa. Tudo o que acontece é interessante, se olhar
com atenção. Repare naquele lagarto, e inclinou a cabeça, devagar, para não o assustar,
que está tentando decidir se sai ou não daquela fenda na árvore». In
Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições
Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.
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