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Transformam assim aquele que os acolhe naquilo que seria, entre os seus, um homem
que soubesse da existência do cálculo, mas se recusasse a corrigir os seus
erros de adição, ciência não me cega (uma vez cego, eu não poderia senão
responder mal às suas exigências) e, igualmente, a matemática não me incomoda.
Admito que me digam dois e dois são cinco?, mas se alguém, visando um
fim preciso, faz contas comigo, esqueço a identidade pretendida de cinco e de
dois e dois. Ninguém saberia diante de mim colocar o problema religião a partir de soluções
gratuitas que o atual espírito de
rigor recusa. Não sou um homem de ciência enquanto falo de
experiência interior, não de objectos, mas no momento em que falo de objectos,
eu o faço como os homens de ciência, com o inevitável rigor.
Direi mesmo que, com frequência,
na atitude religiosa, no meio de uma tão grande avidez de respostas
precipitadas, religião adquiriu
o sentido de facilidade de espírito, e que as minhas palavras iniciais levam
leitores desprevenidos a pensar que se trata de aventura intelectual e não da
incessante actividade que desloca o espírito para mais adiante, se foi preciso,
mas pela via da
filosofia e das ciências, em busca de todo o possível que ele pode abrir.
Todo o mundo, seja quem for,
reconhecerá que nem a filosofia, nem as ciências podem abordar o problema que a
aspiração religiosa colocou. Mas todo o mundo também reconhecerá que, nas
condições em vigor, esta aspiração até aqui não pôde traduzir-se não ser por
formas adulteradas. Jamais a humanidade pôde procurar o que a religião procura há muito tempo, a
não ser num mundo em que a sua busca dependia de causas duvidosas,
subordinadas, quando não ao movimento dos desejos materiais, a paixões de circunstâncias:
ela podia combater esses desejos e essas paixões, podia também servi-las, não
podia ser-lhes indiferente. A busca que a religião começou, e que prosseguiu, não
deve menos que a da ciência ser libertada das vicissitudes históricas. Não que
o homem não tenha inteiramente dependido dessas vicissitudes. Mas isto é válido
para o passado. Chega o instante, precário sem dúvida, em que, a sorte
ajudando, não devemos mais esperar a decisão dos outros (em forma de dogma)
antes de ter a experiência desejada. Até agora, podemos comunicar livremente o
resultado dessa experiência. Posso, nesse sentido, preocupar-me com a religião, não como o
professor que dela relata a história, que fala entre outras pessoas do brâmane,
mas como o próprio brâmane.
Mas
eu não sou nem brâmane nem nada, devo continuar uma experiência solitária, sem tradição,
sem rito, e sem nada que me guie, sem nada também que me atrapalhe. Expresso no
meu livro uma experiência sem recorrer ao que quer que seja de particular,
tendo essencialmente o cuidado de comunicar a experiência interior, isto é, aos meus olhos, a experiência
religiosa, fora das religiões definidas». In Georges Bataille, O
Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987,
Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972 608-018-3.
Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT