«(…) Assim, a minha pesquisa, que
é fundada essencialmente pela experiência
interior, difere na sua origem do trabalho do historiador das
religiões, do etnógrafo ou do sociólogo. Sem dúvida, colocou-se a questão de
saber se era possível para estes últimos se dirigir através dos dados que eles
elaboravam, independentemente de uma experiência
interior que eles tinham, de um lado, em comum com os seus
contemporâneos, e que, de outro, era também até certo ponto a sua experiência
pessoal modificada por um combate com o mundo que fazia o objecto de seus
estudos. Mas, no caso deles, podemos quase adiantar em princípio que: quanto
menor o papel da experiência (quanto mais ela é discreta), maior é a
autenticidade de seu trabalho. Não estou dizendo que quanto menor sua
experiência, menor o seu papel.
Estou, com efeito, convencido da vantagem, para um historiador, de ter uma
experiência profunda, e se ele a tem, visto que ele a tem, o melhor é que ele
se esforce para esquecê-la, e aborde os factos de fora. Ele não pode esquecê-la
completamente, não pode reduzir inteiramente o conhecimento dos factos ao que
lhe é dado de fora, e isto é melhor, mas o ideal é que essa experiência haja apesar dele, na medida
em que essa fonte do conhecimento é irredutível, na medida em que falar de religião
sem referência interior à nossa experiência levaria a trabalhos sem vida, acumulando
a matéria inerte, dada numa desordem ininteligível. Em contrapartida, se eu
encaro pessoalmente os factos à luz da minha experiência, sei o que abandono,
abandonando a objectividade da ciência. Primeiramente, eu o disse, não posso me
proibir arbitrariamente o conhecimento que me dá o método impessoal: a minha
experiência supõe sempre o conhecimento dos objectos que ela põe em jogo (são,
no erotismo, pelo menos, os corpos; na religião, as formas estabilizadas, sem
as quais a prática religiosa comum não
saberia ser). Esses corpos não nos são dados senão na perspectiva em que
historicamente adquiriram o seu sentido (seu valor erótico). Não podemos
separar a nossa experiência dessas formas objectivas e de seus aspectos vistos
de fora, nem do seu aparecimento histórico. No plano do erotismo, as
modificações do próprio corpo, que respondem aos movimentos vivos que nos
sublevam interiormente, estão elas próprias ligadas aos aspectos sedutores e
surpreendentes dos corpos sexuados.
Esses dados precisos, que nos vêm
de todos os lados, podem não só se opor à
experiência interior que lhes responde, mas também a ajudam a
sair do fortuito que é típico do indivíduo. Mesmo estando associada à objectividade
do mundo real, a experiência introduz fatalmente o arbitrário e, se não tivesse
o carácter universal do objecto para o qual está voltada, não poderíamos falar
dela. Da mesma forma, sem experiência, não poderíamos falar nem de erotismo,
nem de religião.
As condições de uma experiência interior impessoal: a experiência
contraditória do interdito e da transgressão
Seja
como for, é necessário opor claramente o estudo que se estende o menos possível no sentido da experiência ao que aí
avança resolutamente. É preciso que se diga ainda que este ficaria condenado à
gratuidade que nos é familiar, se aquele não tivesse sido feito em primeiro
lugar. Essa condição que hoje nos parece imprescindível é de data bem recente. Em
se tratando de erotismo (ou geralmente de religião), a sua experiência interior lúcida
era impossível num tempo em que não aparecia às claras o jogo de balança do interdito
e da transgressão que ordena a possibilidade de um e de outro. Não basta saber que
existe esse jogo. O conhecimento do erotismo, ou da religião, exige uma
experiência pessoal, igual e contraditória, do interdito e da transgressão. Essa
dupla experiência é rara. As imagens eróticas, ou religiosas, suscitam essencialmente
nuns os comportamentos do interdito, em ou mis, comportamentos contrários. Os
primeiros são tradicionais. Os segundos são comuns, pelo menos sob a forma de
uma pretensa volta à natureza, à
qual se opunha o interdito. Mas a transgressão difere da volta à natureza: ela suspende o interdito sem suprimi-lo.
Aí esconde-se o suporte do erotismo e se encontra, ao mesmo tempo , o
suporte das religiões. Eu anteciparia o desenvolvimento do meu estudo se me
estendesse inicialmente sobre a profunda cumplicidade da lei e da sua violação.
Mas se é verdade que a desconfiança (o movimento incessante da dúvida) é
necessária a quem se esforça por descrever a experiência de que estou falando, ela deve
particularmente satisfazer às exigências que posso desde já formular». In
Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa,
L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN
978-972 608-018-3.
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