«(…) A camponesa gritou, mas as miúdas não a ouviram, porque o
galope dos cavalos e o chiar das rodas dos carros cobriram a sua voz. Intrigadas
por fim, as crianças voltaram a cabeça na direcção dos invasores sem verem o
chefe da aldeia e a esposa correrem para elas gritando-lhes que se refugiassem
no palmar. Fascinadas por aquela vaga furiosa, irreal, apertaram as bonecas ao
peito. E a vaga passou, esmagando crianças e adultos apanhados pelas rodas dos
carros e as patas dos cavalos, primeiras vítimas de Tefnakhte, chefe da
coligação líbia do Norte cujos soldados de infantaria massacraram o resto dos
habitantes da Colina dos Pássaros e queimaram as pequenas casas brancas. O que
importavam alguns cadáveres, quando se preparava para se tornar senhor das Duas
Terras, o Baixo e o Alto Egipto? Para o general Tefnakhte, chegara a hora de
esmagar o faraó negro. Tefnakht e, reconhecido como o grande chefe dos líbios,
soberano do oeste do Delta, administrador dos domínios do Baixo Egipto,
estendeu o mapa do Médio Egipto desenhado num papiro de primeira qualidade.
Mênfis é nossa, declarou perante a assembleia dos
confederados do Norte. Conquistámos el-Lisht e aproximamo-nos da cidade de
Heracleopólis. Meus amigos, o nosso avanço foi fulminante! Não vos tinha
predito esta série de vitórias? Para ir mais longe, temos de reforçar a nossa
aliança. É por isso que vos peço que me nomeiem chefe de todo o país. Originário
de Saís, no Delta, Tefnakhte era um homem robusto, de olhos negros muito vivos,
profundamente enterrados nas órbitas. Pouco atraente e ossudo, o seu rosto
traduzia uma vontade orgulhosa; uma profunda cicatriz, recordação de um combate
feroz corpo a corpo, marcava-lhe a testa. Tefnakhte infundia medo desde a
adolescência. Habituado a comandar, não suportava nem os indecisos nem os
medrosos, mas fora obrigado a aprender a ser menos inflexível com os que
pretendiam ser seus aliados. No entanto, disfarçava mal a sua impaciência e
tivera que mostrar-se ameaçador para arrastar os príncipes do Norte a uma
guerra de reconquista do Sul.
Akanosh enfrentou Tefnakhte como porta-voz dos chefes das
tribos líbias que reinavam nas províncias do Delta depois de as terem invadido. Tal como os seus
compatriotas, tinha os cabelos de comprimento médio entrançados, com uma pluma
de avestruz espetada, e o queixo era adornado por uma fina barba pontiaguda.
Pulseiras nos punhos, tatuagens guerreiras representando arcos e punhais nos
braços e no peito. Akanosh envergava um longo manto vermelho preso no ombro
esquerdo e adornado com motivos florais e cuidava da sua elegância. Com
sessenta anos, ter-se-ia contentado de boa vontade com o poder que exercia
sobre o seu território de Sebennytos, mas deixara-se convencer a participar na
aventura militar defendida por Tefnakhte. Felicitamos-te por nos teres
conduzido até aqui disse Akanosh num tom calmo mas a cidade de Heracleopólis é
fiel ao nosso inimigo, o núbio Piankhi, que se considera o verdadeiro soberano
do Egipto. Até agora não reagiu porque o nosso ataque o apanhou de surpresa. O
faraó negro vegeta no seu longínquo Sudão, a centenas de quilómetros daqui! É
verdade, mas as suas tropas estacionadas em Tebas não tardarão a intervir. Tefnakhte
sorriu.
Consideras-me um pobre de espírito, meu amigo? É evidente que,
mais cedo ou mais tarde, receberão ordem para atacar. Mas não estamos
preparados para as enfrentar? Akanosh
fez má cara. Alguns de nós
consideram que a nossa aliança é frágil... És um verdadeiro chefe de guerra,
Tefnakhte, mas somos vários a exercer uma forma de soberania que desejamos
manter. Ir mais longe poderia conduzir-nos à ruína. Será o imobilismo que nos arruinará e privará de todo o poder!
Tornar-se-á necessário descrever o caos em que nos encontrávamos antes de eu
encabeçar esta coligação? Quatro pseudo-faraós no Delta e uma boa dezena de
pretendentes ao trono! O mais insignificante chefe de tribo considerava-se um monarca
absoluto e todos se sentiam satisfeitos com essa anarquia entrecortada por
confrontos sangrentos. É
verdade reconheceu Akanosh e tu devolveste-nos a noção da honra... Mas é
preciso saber manter a razão. Visto que presentemente possuímos metade do país,
não será conveniente que repartamos os territórios conquistados em vez de
corrermos riscos insensatos?» In Christian
Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.
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