«(…) Ideologia da fracção militante da classe operária, mas mais ainda
ideologia dominante de uma fracção cada vez mais vasta da pequena e média
burguesia intelectual, o marxismo, na sua aparência imediata, no seu
vocabulário, nos seus mitos mais actuantes, não deixava grande margem para uma
identificação sentimental com o nacionalismo sob nenhuma das suas formas. O
triunfo nacionalista, de Franco, o lusitanismo agressivo dos ideólogos mais
activos do regime de Salazar, soubera mutilizar com inegável habilidade o
recurso à mitologia patriótico-clerical mais estafada mas não de todo exausta
,opondo ao internacionalismo marxista uma resistência de todos os instantes.
Mas, pouco a pouco, esse internacionalismo marxista que era na prática militante
cultural sobretudo um reflexo quase automático de alinhamento ou exaltação das
conquistas da revolução soviética na sua versão mais apologética,
nacionaliza-se por seu turno, transforma-se em populismo graças a obras
(romances ou poemas) em que uma imagem mais convincente do povo português
cumpre uma assimilação discutida mas inegável dos poderes desse patriotismo
vigente apenas sob a máscara e mitos de uma visão burguesa particularmente
vulnerável e já em causa desde o tempo de Eça de Queirós. Tal foi o papel
histórico considerável do movimento neo-realista, cuja história cultural e
ideológica, na sua complexidade, está por fazer, mas sem o qual a nossa futura
e actual relação de portugueses com Portugal é simplesmente incompreensível. É
sob o seu império ou na sua movência que se cria em relação à clássica imagem
de Portugal como país cristão, harmonioso, paternal e salazarista, suave,
guarda-avançada da civilização ocidental antimarxista, uma outra-imagem que não
é exactamente uma contra-imagem, mas uma complexa distorção desse protótipo que
nalguns aspectos se apresenta como o pólo oposto dela (sobretudo pela ocultação
do carácter repressivo de índole cristã). Na realidade, a oposição
ideológico-cultural ao antigo regime não se apresentou nunca (salvo no estilo
plano de uma luta de expressão clandestina) como obviamente marxista nem assim
apareceu aos olhos públicos, salvo aos de algum argus mais vigilante no campo
dos diversos meios de comunicação de massa. É o carácter obscurantista, a
prepotência de classe ou a glosa romanesca da multiforme miséria do povo
português que servem de alvo ou justificam uma lenta mas implacável erosão do espírito
burguês provincial do salazarismo, sem aliás lhe alterar nem a boa consciência
cultural nem política. Pode mesmo dizer-se que à medida que triunfa, a visão neo-realista
se integra no horizonte global da existência portuguesa e os seus representantes
nem são reconhecidos pelo regime, sem que (ao menos os mais consequentes) o
reconheçam ou integrem, mesmo objectivamente. Paradoxalmente, esta erosão
inegável de um certo conformismo ideológico e político operado graças a essa
espécie de hegemonia espiritual que foi a do neo-realismo durante quase trinta
anos, não subverteu tanto como se podia imaginar a imagem idealizante de Portugal.
De algum modo até contribuiu para a reforçar, não só como necessária para
através dela reinventar no futuro um outro Portugal, livre, igualitário,
fraternal, mas até no próprio presente (e no passado), reformulando no sujeito
povo praticamente todos os clichés que até então haviam funcionado em relação
ao português em geral e a Portugal. Claro, não com a candura e o patriotismo
incandescentes do antigo republicanismo mas por uma idealização evidentedos humilhados
e ofendidos a quem não foi difícil atribuir um suplemento de consciencialização
ideológica ou um heroísmo militante que relevam mais da tradição romântica que
de um implacável e justo olhar sobre a nossa realidade humana. Na reformulação
ou metamorfose da imagem íntima de Portugal e dos portugueses, o neo-realismo
foi, em geral, bem pouco revollucionário. Mas se o tivesse sido mais nãoteria
conhecido o inegável sucesso sociológico que conheceu. O neo-realismo não teve,
nem podia ter, o sentido do trágico histórico, mesmo naqueles autores que por
íntima disposição mais predispostos estariam para o transcrever. O sentimento
da tragédia é relativo e relativizado, excepto num Vergílio Ferreira que
escapará das suas malhas e fará dele, talvez por obsessiva auto punição do optimismo
inicial,o núcleo de toda a sua obra. A imagem de Portugal não é subvertida pelo
neo-realismo mas readaptada à sua função reestruturante e futuramente
harmoniosa de um país que um dia se libertará de males e taras passageiros.
É à margem, mas paralelamente, ao vasto movimentoneo-realista e consciente
ou inconscientemente em reacção contra ele que se forjam as autênticas
contra-imagens de Portugal, umas de máxima positividade, outras de total e dinamitadora
subversão, tanto quanto em nós cabe. Continuamos a referir-nos às imagens
culturais, à nossa (da maioria letrada e ledora do país) e não à subversão, da
sua própria realidade que a esta só o movimento concreto da história que no
cultural se investe (ou inverte) a realizará (se realizar), não apenas as que
se opõem àquelas que do século XIX continuavam a escoar-se e a ecoar no
subconsciente racional,mas às clericais-fascistas, aos arquétipos líricos do
eterno Portugal meu berço (de) inocente que a pedagogia do regime destilava
como mel obrigatório desde o banco da escola primária à Universidade. O
surrealismo, com os caracteres bem próprios que foram os seus entre nós,
redimensionava a imagemda nossa relação com a realidade portuguesa segundo
cânones, modelos, inspirações que procediam de uma das mais radicais metamorfoses
da cultura do século XX e retomava, agora sob um modo burlesco, a lógico,
provocador, a tentativa ganha e perdida pela aventura sem herdeiro do primeiro
Álvaro de Campos. Ideologicamente, o surrealismo, apesar de uma aparente
indiferença às clivagens maniqueístas próprias do mundo político, batia-se
sobre duas frentes: uma, a do conformismo secular reformulado pelo fascismo em
termos de pesadelo azul, quer dizer, contra a ordem moral de salazarístico
perfil; outra, a do conformismo marxista, não só ideológico, como cultural,
totalmente alheio às potencialidades subversivas da linguagem em prise directa
com as pulsões do inconsciente ou da simples vocação humanística à Lewis Carrol
ou Edward Lear. O que o surrealismo, mesmo tendo em conta o seu carácter de
fenómeno citadino e de seita,contribuiu para extirpar foi a omnipotência da
percepção realista, nas letras e na cultura, abrindo assim a larga estrada por
onde passará em seguida a pé enxuto a grande enxurrada de um imaginário lusíada
submerso e que encontrará em obras não directamente ligadas ao surrealismo,
como as de Agustina Bessa-Luís e Ruben A., a sua expressão pública mais torrencial.
Ao mesmo tempo, o impacte surrealizante trabalha e metamorfose ia do interior o
próprio projecto neo-realista (em particular no campo poético), metamorfose de
que os começosdos anos 50 e as seguintes décadas acentuarão cada vez com mais
revulsiva eficácia até dissolver nela o impulso original,e a figura mesmo do
neo-realismo. Foi a esta vaga de fundo que em tempos aplicámos o epíteto de literatura desenvolta mas ao qual mais
conviria o de cultura desenvolta, pois a pressão libertária que o surrealismo
exprimiu ou canalizou em primeiro lugar (a par de outras expressões que sem
serem surrealistas modularam ao mesmo tempo uma exigência de libertação
cultural paralela) não se ficou apenas no campo clássico da literatura, mas
irradiou e reestruturou toda a experiência formal dos seus contemporâneos». In
Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino
Português, Gradiva, Lisboa, 2000, ISBN 978-972-662-765-4.
Cortesia Gradiva/JDACT