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A
descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) E mais importante ainda: se seguirdes a melodia e o ritmo
destas palavras até à sua cadência final, compreendereis porque não devereis
pôr os pés na Europa cristã. Não vos deixeis iludir: sob a superfície desta
história corre o gume de uma parábola de advertência. Estou persuadido de ter
sido a vossa segurança que levou meu tio Abraão a aparecer-me e a mandar-me a
Portugal. Renunciasse eu a escrever, deixasse eu que a memória se apagasse em
tépido silêncio, e poderiam pesar-me nas mãos também as vossas mortes. Quanto à
teia de mistérios que desenrolarei perante vós, haverá inimigos meus que dirão
que não passa de arabescos intrincados nascidos do desejo de ocultar as manchas
de sangue das minhas próprias mãos. A evidência porém haverá de apontar noutra
direcção. Meu tio Abraão concedeu-me esta oportunidade de viver plenamente a
minha própria vida e não hei-de desapontá-lo de novo. Se pois vos parecer
complicado, ou mesmo contraditório, o que surge de entre a malha da mais
modesta das minhas frases, sabereis que isso se deve ao meu desejo de vos
apresentar os acontecimentos tal como
eles verdadeiramente ocorreram, para que me vejais tal como sou. Pois o judeu
não é nunca a criatura simples em que os cristãos sempre pretenderam fazer-nos
acreditar. E um herético judeu não é nunca tão falho de espírito como pretendem
os nossos rabinos. Somos antes tão profundos e abertos que nos pode caber na
alma todo um rio de paradoxos e de enigmas.
Há ainda uma última confissão que deverei fazer: não tenho
a menor ideia porque é que na visão meu tio Abraão me chamou pelo nome de meu
irmão mais velho, Mardoqueu, e esta minha ignorância inquieta-me. E como se a
aparição do meu mestre escondesse um mais profundo significado, uma camada
interior a dar sentido às mortes de há vinte e quatro anos e que eu não consigo
ainda apreender. Por que razão, por exemplo, só agora o meu tio me terá
aparecido? Preciso seguramente de mais tempo para considerar o assunto. A não
ser que ele pensasse que a luz do entendimento iria penetrando as minhas trevas
à medida que fosse escrevendo a nossa história. Será que só atingirei a
compreensão das subtis conexões entre passado e presente assim que o meu manuscrito chegar
ao fim? Uma tal possibilidade faz-me sorrir, acalma um pouco as minhas dúvidas;
é como se meu tio me exigisse um dia e uma noite de trabalho terreno antes de
me abrir o derradeiro reduto do seu significado celeste! Continuo, pois,
adiante...
A primeira vez que me ocorreu traçar as nossas atribulações
numa página manuscrita, escondia-me, juntamente com a minha família, numa cave.
O mistério, em toda a sua complexidade, acabava apenas de se me revelar. Foi aí
que iniciei a minha história de vinte e
três anos antes. E será aí que também agora começaremos. Há três acontecimentos
de que deverei falar antes de chegar à morte que mudou as nossas vidas: a
procissão dos penitentes; a injúria a um amigo querido; e a prisão de uma
pessoa da família. Tivesse eu entendido o alcance de tais presságios,
tivesse-os eu lido como versos de um poema único escrito pelo Anjo da Morte, e
teria talvez salvo muitas vidas. Mas a Ignorância traiu-me. Talvez que,
lendo as minhas palavras ao fio destas páginas, sejais vós melhor sucedidos. Assim vos seja concedida a visão
clara.
Sentai-vos pois no sossego de uma sala alindada por uma
cercadura de plantas ou flores fragrantes. Voltai-vos para oriente, para a
amada Jerusalém. Desatai com cânticos os nós do espírito. E deixai a luz ténue
de uma candeia lançar a penumbra sobre as páginas que ides passando. Brubeem
koldemuyay eloha! Abençoados sejam todos os que são feitos à imagem e
semelhança do Senhor! Berequías Zarco, Constantinopla. (1530 da era cristã).
No ano de 1494 da era cristã, tinha eu oito anos, li a história
dos íbis sagrados que tinham ajudado Moisés a atravessar um pântano etíope
infestado de cobras. Com as tintas e corantes de meu tio Abraão desenhei um
animal vermelho e negro com um bico em forma de foice. O meu tio pegou no
desenho para o observar. Olhos de prata?,
perguntou». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa,
1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
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de QuetzalE/JDACT