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«(…)
Enquanto Izzy se abaixava para apanhar as folhas que
o Outono pintara de vermelho e âmbar, eu ia me obrigando a falar, para me
impedir de entrar em desespero. Contudo, eu sempre perdia a voz nos piores
momentos, e por isso, ao fim de um quarteirão apenas, vi-me obrigado a
responder-lhe apenas com um gesto de mão. Mesmo assim, meus pés continuavam
andando, uma pequena vitória, e depois de algum tempo, como se me fosse
transmitida pelo próprio ritmo da caminhada, senti uma calma etérea invadir-me.
Mas, quando passávamos pelo Castelo Real, com a sua torre destruída, um grupo
de jovens arruaceiros começou a nos xingar. Para iludir as suas tentativas de
provocação, Izzy começou a cantar uma canção popular francesa na sua voz trémula de barítono; habituamo-nos a nos
proteger com o som das nossas próprias vozes desde os tempos da escola, quando os
nossos companheiros de classe cristãos implicavam connosco. É que os judeus da
nossa terra aprendem estratégias defensivas desde muito cedo.
Ao longo da rua Freta, entramos numa fila de mais
refugiados dentro da nossa própria cidade. Quem diria que tantos de nós
possuíam samovares, móveis de vime e quadros com paisagens exuberantes? Ou que
uma jovem mãe com a filha pequena agarrada à barra do vestido se lembraria de
levar um vaso sanitário para o exílio? Olhei para os rostos à minha volta,
pegajosos de suor e poeira, corroídos de pânico. Sentindo os meus pensamentos
prestes a soçobrar num abismo de amargura, Izzy enfiou o braço no meu e
obrigou-me a seguir em frente. Ao chegar à porta do prédio onde morava Stefa,
puxou-me para o lado e disse: o céu, Erik, é o lugar onde as pessoas mais
pacatas ganham todas as discussões. Izzy e eu tentamos muitas vezes surpreender
um ao outro com poemas de um verso só, gedichtele, como
dizemos em iídiche, uma língua que envolve os pequenos e insignificantes
como o amor de uma mãe. Mas então o que acontece aos pacatos, no inferno?,
perguntei, referindo-me ao aqui e agora. Sei lá!, respondeu, mas, quando
estávamos subindo as escadas, cada um arrastando uma mala, ele me fez parar de
repente. Soltando uma gargalhada alegre, anunciou: Erik, no inferno não há
gente pacata!
Stefa queria que Adam dormisse na cama dela,
para eu poder ter a minha privacidade na sala, mas o menino saiu batendo pé
pela cozinha assim que cheguei, gritando que era muito crescido para dormir com
ela. Izzy, grande traidor, presenteou Adam com as suas folhas de Outono
coloridas e correu para casa. Sentei-me junto das minhas malas inchadas como se
fossem dois cadáveres, encharcado de suor e humilhação. Enquanto tentava
recobrar a respiração e a calma, a minha sobrinha veio conversar comigo.
Sabendo o que ia exigir-me, levantei a mão num gesto brusco, como que traçando
uma última linha que ela não se atrevesse a ultrapassar. Está fora de questão!,
vociferei. Pensar que o meu brado iria servir de trunfo contra o desespero do filho dela foi o erro de um
homem que entregara a educação da filha às mãos da mulher. Em breve consegui
fazer mãe e filho chorarem, e os Tarnowski vieram ver o que era aquela
gritaria. Parecia uma ópera de Rossini, interpretada numa algaravia grotesca de
iídiche e polonês. E eu era o vilão derrotado, com a cabeça entre as mãos trémulas.
Mais cedo ou mais tarde, você vai fazer
o tio Erik se sentir mais contente com tudo se se portar como um anjo, ouvi
Stefa sussurrar a Adam nessa noite enquanto lhe aconchegava a roupa na cama,
mas aquilo de fazer o menino sentir-se responsável por facilitar a minha
adaptação a uma vida que nunca desejara só serviu para fazer-me agarrar à minha
fúria com mais força ainda. A ironia era que eu e Adam éramos amigos antes de
eu me mudar para lá. Aos fins-de-semana, lançávamos barcos de papel no lago do
parque Łazienki, e ele tagarelava sobre a sensação de estar crescendo numa era
de estrelas de Hollywood, luzes néon e automóveis. Menor do que a maioria dos
meninos da sua idade, descobrira o seu talento como jogador de dardos; parecia
a encarnação de um peixinho prateado. Fora eu quem lhe pusera a alcunha de Piskorz». In Richard Zimler, Os Anagramas de
Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, isbn 978-850-109-966-2, Porto Editora,
Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.
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