quarta-feira, 25 de julho de 2018

Os Anagramas de Varsóvia. Richard Zimler. «Desolado com o meu silêncio, começou a chorar. Você me odeia, tio Erik, balbuciou. A essa altura, fiquei contente ao ver as suas lágrimas e ao ouvir o desgosto na sua voz»


jdact e wikipedia

«(…) Contudo, durante aquelas primeiras malditas semanas em que fomos companheiros de quarto, até a suave respiração dele me impedia de adormecer. Sentava-me junto à janela embrulhado num cobertor, fumando o meu cachimbo e olhando as estrelas, com uma dor de desalojado no estômago. Durante quanto tempo ainda teria de ser um refugiado na minha própria cidade? Era estranho, mas os meus pensamentos voltavam-se frequentemente para meu pai, de cadeira dobrável debaixo do braço e um romance na mão a caminho da praça Saski, onde eu soltava pipa. Todas as vezes, aquela imagem afável dele a me vigiar penetrava no meu espírito, como um filme mudo paralisado num único fotograma. Uma manhã, ao nascer do sol, percebi porquê: aquele seu cuidado paternal, aqueles seus gestos distintos, representavam um modo de vida que os nazistas andavam assassinando. Embora essa acabasse por se revelar apenas uma das razões pelas quais meu pai fora encontrar-se comigo…
Uma noite, durante a minha segunda semana no gueto, Adam acordou de repente de um pesadelo e começou a choramingar, a cabeça enfiada no travesseiro. Depois de algum tempo, arrastou-se até mim, vestido só com a parte de cima do pijama, tremendo de frio, os braços esticados para se equilibrar, como um duende dançarino balançando ao luar. Devia ter tirado as calças do pijama durante a noite, porque ultimamente nunca deixava que eu ou a mãe o víssemos nu; o seu melhor amigo, Wolfi, dissera-lhe estupidamente que tinha os joelhos ossudos e que aquela marca de nascença no tornozelo era ridícula. Quando lhe perguntei o que se passava, baixou os olhos para o chão e sussurrou que eu já não gostava dele. Quanta coragem não lhe deve ter sido necessária para se aproximar assim do Lobo Mau! A minha vontade era envolvê-lo nos braços e dar-lhe um beijo no cabelo sedoso, mas contive-me. Foi um momento de triunfo sinistro sobre aquilo que eu sabia estar certo.
Desolado com o meu silêncio, começou a chorar. Você me odeia, tio Erik, balbuciou. A essa altura, fiquei contente ao ver as suas lágrimas e ao ouvir o desgosto na sua voz. Sabe, Heniek, alguém tinha de ser castigado por nossa prisão, e eu sentia-me impotente para agir contra os verdadeiros vilões da nossa ópera. Vá dormir, disse-lhe eu com aspereza. Como é fácil perder o controle do amor! Uma lição que já aprendi e tornei a esquecer uma meia dúzia de vezes ao longo da minha vida. Mas, se você pensa que eu só quis magoar Adam, está enganado. E consegui o que queria, já que a vergonha gelada que senti nessa noite ainda hoje me persegue.
Stefa costumava acompanhar o filho à escola clandestina na rua Karmelicka todas as manhãs às 8h30, a caminho da fábrica onde costurava uniformes para o Exército alemão durante dez horas por dia. No princípio da tarde era eu que ia buscar o menino para levá-lo para casa, já que o meu trabalho na Biblioteca Iídiche terminava às 13 horas, mas ele recusava-se a dar-me a mão e desatava a correr à minha frente. Chegando em casa, atirava-se como um saco de batatas para a cadeira dele junto à mesa da cozinha, com a postura de um combatente infeliz numa guerra não declarada. Eu fazia-lhe o almoço, que geralmente consistia em pão com queijo e sopa de cebola ou de nabo, receitas do meu tempo de estudante em Viena. A essa altura ainda tínhamos pimenta. Adam a moía como um louco por cima da sopa, salpicando de preto a superfície fumegante, e a seguir levava a tigela à boca com ambas as mãos e saboreava o sabor picante». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, isbn 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.

Cortesia de ERecord/PortoEditora/JDACT