«(…) Sem muita cerimónia, o perseguidor virou-o, deixando as suas
costas voltadas para o chão. Buscou a sua mão direita e rasgou-lhe o pulso
usando a lâmina de barbear. O sangue escorreu pelo chão da floresta, começando
a jorrar da ferida. O facínora levou o membro direito de volta ao chão. Em
seguida, apanhando a mão esquerda, pôs a lâmina sobre a palma e fechou os dedos
em torno dela. Com cuidado, pousou a mão no chão. Deixemos o castigo pelas suas
blasfémias a cargo de Deus. O seu tempo na Terra chegou ao fim, velhote. O
professor reuniu todas as forças que tinha para tentar abrir a mão e deixar a lâmina cair; contudo, nada
aconteceu. Ali estava ele, paralisado. O seu próprio algoz. Não há Deus bíblico
que me possa punir. Minha prova será encontrada..., a voz do professor foi
sumindo enquanto os músculos das suas cordas vocais sucumbiam ao veneno. O
homenzinho dirigiu-se com rispidez ao companheiro: a teimosia desse homem não
acaba nunca? De onde ele tira essa crença doentia? Parece uma barata, é
impossível exterminá-lo. Agachou-se e tocou levemente o pescoço do professor
com um pedaço de tecido. Quem diria que um simples académico poderia causar
tanto problema?! Precisamos voltar ao hotel e vasculhar o quarto dele. Temos
que destruir tudo que possa servir como prova. Olharam o corpo imóvel por mais
alguns segundos, e então desapareceram em silêncio noite dentro. O professor
Kent, com o corpo completamente incapacitado, olhava as estrelas. Durante anos
ele estudara o céu como parte da sua busca da grande verdade, e mesmo agora,
apesar do seu estado de debilidade, a sua mente seleccionou todas as configurações das constelações. À medida
que as suas forças se esvaíam, ele pensava na sua última descoberta. Então, minha intuição estava certa.
Desvendei o último mistério. Mas isto quer dizer que o mundo corre um sério risco.
Os mapas estão seguros? Com a minha partida, alguém entenderá o que significam?
Em seguida, tudo escureceu.
Eram 11h55 de uma manhã de Março, uma terça-feira
ensolarada e atipicamente quente. Catherine Donovan, aos 29 anos, uma das
professoras titulares mais jovens da Universidade de Oxford, atravessou o vão
entre os enormes portões de madeira da portaria e penetrou na quietude do belo
quadrilátero anterior do All Souls College. A luz do sol se derramava na relva,
aquecendo a parede de pedra, enquanto os sinos da universidade badalavam
vigorosamente, anunciando a chegada do meio-dia. O All Souls College, onde
Catherine tinha a sua cadeira, embora fosse o mais prestigiado, era também o
mais reservado de entre as trinta e cinco faculdades da Universidade de Oxford.
Esta faculdade não tinha estudantes de graduação, ao passo que a maioria das
outras tinha pelo menos duzentos, e as maiores chegavam a contar com
quatrocentos. Em linhas gerais, o All Souls era a moradia exclusiva dos
eruditos de categoria internacional, e os seus membros selectos dedicavam-se a
difundir conhecimentos sobre assuntos que podiam variar da física nuclear à
arte islâmica. A única possibilidade de um forasteiro fazer parte deste grupo de elite era passar por um rigoroso
processo de recrutamento realizado num lugar qualquer do mundo académico. Contudo,
para aqueles que conseguissem, valia a pena. Os membros eram tratados como reis.
A adega era uma das melhores, e aqueles que ocupassem os apartamentos da
faculdade ainda podiam escolher ser despertados por um mordomo pela manhã. Ele
lhes traria chá, torradas e o jornal do dia, tudo servido numa bandeja de
prata. Entretanto, o melhor de tudo isso era o facto de nenhum dos membros ser
obrigado a leccionar, cada um podia dedicar-se a fazer descobertas inovadoras
na especialidade de sua escolha.
Para Catherine, uma bela mulher, jovem e de origem
americana, o All Souls era um ambiente particularmente estranho. Os outros
membros, acostumados a toda espécie de excentricidade, consideravam-na apenas
mais uma desajustada num grupo de desajustados; sendo assim, acolheram-na,
satisfeitos em saber que já era uma das maiores autoridades no seu próprio
campo de pesquisa: astronomia. Catherine
Donovan consultou o relógio. Faltam cinco minutos para o início da palestra.
Entrou rapidamente no alojamento e, vasculhando o seu escaninho, agarrou
a correspondência da manhã: dois comunicados, corriqueiros, enviados pelo
departamento de astronomia e um
envelope grande, castanho, que se percebia claramente fora enviado do estrangeiro.
Examinou o envelope às pressas e logo reconheceu a letra do professor Kent. A
última coisa que queria era atrasar-se para a última palestra do período lectivo,
por isso, enfiou o envelope na bolsa e, a passos largos, contornou o
quadrilátero em direcção ao auditório.
Como sempre acontecia nas palestras da dra. Donovan, o belo
e antigo salão de pedra, localizado na região central da faculdade, estava
lotado de alunos vindos de toda a universidade. As suas palestras eram, sem
sombra de dúvida, as mais populares do departamento. Ela as ministrava por
livre e espontânea vontade, porque apreciava ter um pouco de contacto com os
alunos. E eles respondiam a isto comparecendo religiosamente, com o número de
estudantes crescendo à medida que as séries de palestras prosseguiam. Um dia
antes, durante o intervalo para o café na sala dos professores, alguns dos
colegas com quem tinha mais contacto haviam feito comentários maldosos sobre o
assunto. Disseram ter ouvido dois alunos descrevendo-a como a professora mais
atraente da universidade. Com cabelos castanhos na altura dos ombros, malares
delicados e salientes e a graça de uma atleta, ela chamaria a atenção em
qualquer lugar, e sabia disso». In Tom Martin, Pirâmide, Publicações dom
Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-586-6».
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