«Lá do alto, respirando o ar rarefeito dos Andes, o
professor Kent contemplava pela última vez a beleza das antigas ruínas de Machu
Picchu, que ficavam a 9 mil metros de altitude. Fazia apenas dez minutos que
ele dormira profundamente na cama confortável do Hotel Ruínas, próximo ao
mundialmente famoso património histórico da Unesco, quando, de repente, sem
qualquer cerimónia, fora arrancado do sono por dois estranhos. Antes que
conseguisse gritar por socorro, amordaçaram-no e o arrastaram para fora da
cama. Sem dizer uma única palavra, conduziram-no à força e descalço pelo
corredor, passando por uma saída de incêndio, que acabou por levá-los à rua,
onde o frio da noite era glacial. Então
eles finalmente vieram atrás de mim depois de todos esses anos. Era
uma afirmação terrível. Nos últimos meses, começara a duvidar da própria
sanidade, mas aquele rapto nocturno lhe provava que as descobertas que fizera
eram tão importantes quanto pensava... Durante muito tempo, suspeitara de que,
se continuasse a trabalhar naquelas descobertas, acabaria despertando as forças
do mal. Cada uma que fazia o deixava cada vez mais tentado a pôr um ponto final
na sua permanência neste planeta. Para
onde me vão levar? O ar congelante da noite arrancava-lhe o calor do
corpo trémulo, o professor Kent tropeçou enquanto era arrastado pelos braços
por um caminho estreito e íngreme, em direcção ao interior da região
montanhosa. Ao lado daquele facínora corpulento que o empurrava ladeira acima na
escuridão, Kent tinha um aspecto deplorável. A barba branca e o cabelo ralo
emaranhavam-se com o suor, e o rosto pálido era quase o de um fantasma.
Entretanto, mesmo passando por aquilo, a visão dos arredores era consoladora.
Iluminada apenas pela lua, a paisagem irradiava uma beleza intensamente
sagrada. Chegaram a um planalto, e o mais baixo dos raptores, que se arrastara
ao longo do caminho, virou-se, tirou uma pequena caixa do bolso do casaco e abriu-a.
No meio da escuridão, o professor Kent não conseguia ver o que havia dentro
dela. O bandido mais corpulento, que prendia Kent com uma algema, de repente
forçou o homem apavorado a ajoelhar-se. Tomado de pânico, o professor Kent
começou a relutar, mas o homem gigantesco empurrou-o com tanta força que ele
acabou deitado com o rosto no mato, esticado no chão. Pouco tempo depois sentiu
a mão violenta de alguém arrancar-lhe a mordaça.
Quando viu o outro raptor agachado ao seu lado, segurando
uma seringa, Kent começou a gritar. Lentamente, muito lentamente, ao que
parecia, o homem elevou a seringa à altura do seu rosto. À luz da lua, via-se a
gotícula de um líquido semelhante a mercúrio brilhando na ponta do instrumento.
Em seguida, o homem mais baixo disse com voz sibilante no ouvido do professor:
quer acrescentar mais alguma coisa ao seu rol de mentiras, velhote? Tinha
sotaque estrangeiro, embora não fosse possível dizer a procedência. O professor
Kent ergueu o pescoço o mais que pôde, até que, com o canto do olho, conseguiu
ver o rosto de quem o interrogava. Com grande esforço, proferiu, em tom áspero,
uma pergunta. Se o que digo são mentiras, então por que vieram atrás de mim? O
homem sinistro riu com escárnio. Então, inclinou-se para a frente e roçou a
ponta da seringa no pescoço do professor. Kent mal sentiu o arranhão, mas sabia
que era o suficiente; logo depois, os seus pulmões começaram a comprimir-se. Ao
perceber que o veneno lhe penetrava as veias, subitamente sentiu-se livre de um
tremendo fardo. Agora, tudo o que queria era que o deixassem morrer em paz;
entretanto, o seu algoz continuava com as zombarias. O professor Kent, é um
demónio. E os demónios devem ser mandados de volta ao inferno, que é o lugar
deles. Já chega!, guinchou o homenzinho. O cúmplice empurrava a cabeça do
professor em direcção ao mato. Kent sentia que estava às portas da morte. Não
quero ouvir as suas mentiras. Já passou pela sua cabeça que o passado e o futuro
são propriedade particular e não lhe pertencem, professor Kent? Eles pertencem
a pessoas mais importantes, havia ódio na voz do carrasco. Achou que era mais
esperto que nós? Passou pela sua cabeça que algum dia poderia revelar o que
descobriu? Enquanto falava, algo brilhou na mão do carrasco. Era uma lâmina de
barbear. O que ele está fazendo?,
pensou o professor, voltando-se para o homem com um olhar cansado. Ele já me
condenou à morte com o veneno. O homenzinho continuou a falar, com a voz
destilando sarcasmo. Somos generosos. Acreditamos que, tal como Sócrates, o
filósofo grego, a quem deram a oportunidade de decidir o seu próprio destino, também
deveria merecer a mesma prerrogativa... Não lhe propomos uma morte terrível.
Isso poderia despertar curiosidade, um interesse repentino nas aplicações
desconhecidas das suas assim chamadas teorias. Um suicídio é bem menos
apelativo que um assassinato, não acha? Dito isto, o professor Kent sentiu que
a mão do gigante o soltava. Por uma questão de instinto, tentou mover-se, mas o
seu corpo não respondeu ao impulso, estava paralisado». In Tom Martin, Pirâmide, Publicações
dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-586-6».
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