«(…) Já citámos dois temas comuns às duas: o tema Amor e Riqueza e o
tema da fidelidade até à morte, que se reflecte no Crisfal com a imagem
da sombra. Lembraremos ainda que ambas as composições abrem pela descrição do
sofrimento da ausência; que certos versos da Écloga se explicam por
outros da Carta; assim, este pensamento da Carta:
que a vida é de uma hora,
este bem será eterno (a ser verdadeira a
lição de 1619)
foi erguido pelo autor da Écloga às alturas da poesia e serviu de ponto
de apoio para um belo voo sobre os mistérios de além-túmulo:
o amor a alma acompanha.
Mais do que isso, o drama completo do Crisfal esboça-se na Carta,
onde adivinhamos o debate da heroína entre os conselhos da parentela e o seu
próprio sentimento e onde podemos prever a vitória final deste último, como a
prevê o próprio autor ao afirmar a sua confiança na fidelidade dela. Ainda
mais: o sonho do Crisfal com a cena das lágrimas pode-o ter sugerido este passo
da Carta:
[….] lembranças tão mortais
traz à minha fantesia,
que basta uma de um dia
para me os meus tirar:
nele vos vi eu chorar
e nele chorei também.
Convertendo a lembrança em sonho e fundindo a cena das lágrimas,
passada e por isso sonhada, com a preocupação presente da pressão da parentela
e da preocupação do dinheiro, poderia o Poeta ter criado a Écloga partindo
da Carta. E isto explicaria o sentido oculto daquelas palavras:
Eu o treladei dali
Perguntará alguém se um
poeta tão profundamente subjectivo e tão consumido pela própria tragédia
interior, como era Bernardim Ribeiro, teria disposição e feitio para contar
mágoas alheias. Eu lembrarei que o dom dos poetas, sobretudo dos poetas
profundamente subjectivos, e nós já veremos em que sentido esta palavra se pode
aplicar a Bernardim Ribeiro, é precisamente sentir como suas as mágoas alheias,
saber captar para o seu mundo interior as vibrações perdidas no espaço. E neste
caso particular há a observar que Bernardim poderia ter encontrado na história do
Crisfal um caso muito semelhante ao seu: a mesma separação da amada, o mesmo
sofrimento da ausência, a mesma intromissão dos fados inimigos. Parece-me isto
suficiente. Mas, para tirar as dúvidas a algum leitor mais escrupuloso em pôr os
pontos nos ii, 1embrarei ainda os
seguintes factos:
a) que o ambiente do Cancioneiro
Geral em que viveu o nosso Poeta era extremamente propício aos brinquedos
poéticos, ou, por palavras menos simples, ao exercício da poesia como
actividade lúdica;
b) que, pelo menos a
cantiga ou solau Pensando-vos estou filha e o Romance de Avalor,
na Menina
e Moça, são composições feitas ad hoc, para ilustrar histórias imaginadas
pelo Poeta e, portanto, alheias a ele, objectivas;
c) que a cantiga Não
sam casado, Senhora, segundo a hipótese de Carolina Michaëlis, a única com
alguma verosimilhança, é um exercício poético de natureza desportiva ou lúdica».
In António José Saraiva, Poesia e Drama, Estudos sobre Bernardim
Ribeiro, Gradiva Publicações, Lisboa, 1996, ISBN 972-662-477-0.
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