O
Medalhão de Ouro
«(…) Nesse dia o fradelo
havia-nos lido o Sermão da Montanha, do Evangelho de São Mateus, e comentava
uma a uma as oito bem-aventuranças. Na fase da fixação memorial, obrigava-nos a
repetir em coro, monocordicamente, as oito bem-aventuranças, numa cantilena
enfadonha, fastienta, até à saciedade, ao sono, que nós prosseguíamos olhando
distraidamente ou para o vitral e o sol que por ele coava, ou para a porta que
deitava para o pátio, na ânsia de irmos brincar e correr: Bem-aventurados os
mansos, porque hão-de possuir a terra; Bem-aventurados os que choram, porque
serão consolados; Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de
Deus. Eu beliscava o companheiro do lado. Irmão, este menino beliscou-me. Bem-aventurados
os que sofrem perseguição pela justiça, porque deles é o reino dos céus. E
enquanto eu fico de castigo, de joelhos, de costas para o vitral, o fradelo manda
os outros irem correr lá fora, ao sol, e saí também. Eu viro-me logo de frente
para o vitral, sento-me sobre os calcanhares, esquecido de tudo, boca e olhos
bem abertos na funda contemplação do deslumbramento da luz, da polifonia das
cores, da transfiguração sobrenatural das formas. Não decorre muito tempo desde
que estou neste enlevo quando ouço passos e entra na sacristia uma mulher nova
que denota uma certa inquietação. Se vira frei Andrade. Fora até lá fora com os
outros, respondia. E eu não ia? Estava a rezar? Não, estava era de castigo.
Oh, meu pequenino!, e pega-me ao
colo, sentando-se no banco. Como me chamava? Os seus olhos sorriem-me, os seus
lábios, quentes, macios, beijam-me, mas são os seus seios estalando rijos e
pejados, lácteos, no corpinho leve, que me atraem numa atracção indizível e me
provocam na boca uma insólita salivação. João. João quê? Nunca senão naquele
momento havia reparado que era só João. Os outros podiam dizer que eram Fulanos
de qualquer coisa, Sicranos de tal, filhos de algo. João, respondo eu,
encolhendo os ombros. Ela compreendia. Um órfão certamente. E que fizera o Joãozinho
para merecer castigo ? Belisquei o meu companheiro. Seu maroto!, exclama
sorrindo-me e endireitando-me os caracóis na cabeça. Um menino tão bonito!
Prometesse-lhe que não tornava a fazer aquilo, prometia?, e encosta-me
maternalmente a cabeça ao peito, enquanto me afaga. Prometo, respondo,
deixando-me estar encostado, fechando os olhos por momentos, sentindo em todo o
meu ser um indefinido cansaço que vem de trás, doutro tempo, não sei de onde, e
um estranho bem-estar que deve certamente de ser o que sentem os anjos no Céu. Lindo
menino!, diz ela, dando-me um beijo. Depois, pondo-me no chão: se lhe ia pelo
fradelo? Precisava muito de falar com ele. Vou pôr-me a caminho quando entra o
fradelo: que estás a fazer?, grita zangado. Não te disse para ficares de... Fui
eu que lhe disse que vos fosse chamar, irmão-interrompeu ela. A mãe do Berto
acabara de falecer. Tinha de o levar consigo... O Senhor tivesse a sua alma em
descanso! Seguisse-o. Ia chamar o menino.
Amém!, diz ela e vai seguir o
fradelo mas eu toco-lhe a mão, olho-a a sorrir. Ela inclina-se, dá-me um beijo
e sussurra-me ao ouvido: não te esqueças do que prometeste. Não me esqueço,
respondo eu, sussurrando por minha vez, num perfeito estado de beatitude. Ela
saiu. Nunca mais a vi, mas também nunca mais me esqueci do que lhe havia
prometido e passei a beliscar os outros companheiros... menos aquele. Durante
muito tempo também não tornamos a ver o Berto. Soubemos que esteve gravemente
doente com o abalo sofrido pela morte da mãe. Deixara de comer, chorava
lágrimas a fio constantemente, não dormia e definhava de tal sorte que era só
ossos. Mais se acentuou então no meu espírito o reparo que já havia tempos
fizera de que aquele grupo de catecúmenos era constituído por duas espécies de
rapazinhos, os externos e os internos. Aos primeiros vinham-nos buscar, ao fim
das aulas, as serviçais das senhoras suas mães e, às vezes, as senhoras suas
mães em pessoa, todas perfumadas e ataviadas de veludos e de sedas, tecidos
preciosos cujo uso, por ordenação do tempo de el-rei D. João II, só não era
defeso a donas e senhores muito ilustres. Quanto a nós outros, recolhíamos ao
internato, em regime de completo silêncio, as horas todas distribuídas por
tarefas impostas em calendário rígido, ordenado a toque de sineta, com
intermináveis rezas e cantos na capela, severa disciplina na grande sala de estudo
e no refeitório, até acabar o dia no recolher, exaustos, ao dormitório de
brancas camas alinhadas, homogéneas, frias, no desvão de umas compridas e desconfortáveis
águas-furtadas. Nessa noite, mal me deitei, adormeci e desatei a sonhar. Eram
imagens dispersas, dilaceradas, partidas, que apareciam e se transformavam, iam
e vinham, nítidas, esbatidas ou disformes, mas sempre acabavam por vir dar a um
tema central: uma descomunal pia de água benta encimada por um imenso vitral,
cuja figura principal, em pé, esguia, a toda a altura, era Nossa Senhora.
Segurava ao colo o Menino Jesus. Eu estava sentado nos calcanhares, em cima de
uma nuvem que não sei se fazia parte do vitral se não, e aos meus olhos a
figura da Virgem Maria começou a sorrir-me, com as feições bonitas que eu vira
na sacristia àquela mulher jovem que, por via da morte de mãe de alguém
indefinido, me pegara ao colo... O Menino Jesus era eu, ela anelava-me com os seus
dedos suaves a madeixa dos cabelos e eu, os pés descalços e rechonchudos a
rebulir irrequietos e rosados, tomava consoladamente a mamada de um dos seus
rotundos e fecundos seios. Interpunha-se depois a imagem de Berto, a chorar,
levado pela mão de uma figura esfumada, e logo a desvanecer-se e com ela a
esvair-se o sonho todo. Quando de manhã a sineta tocou, lavei-me como um
sonâmbulo, vesti-me como um sonâmbulo, fiz a cama como um sonâmbulo e com os
outros dirigi-me para a capela como um sonâmbulo, de tal modo o que se passara
na véspera e o que eu sonhara ocupavam o meu espírito». In Fernando Campos, A Casa do Pó,
Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT