quinta-feira, 30 de agosto de 2018

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Era uma das minhas muitas fraquezas essa do apego aos livros, mas acontecia que, quando eu saía a calcorrear Lisboa, sempre acudia alguém, o abade, o bibliotecário…»

jdact

O Medalhão de Ouro
«(…) Capuz atirado para a nuca, segurando na mão uma cana que não nos metia medo, o caracol ruivo na testa a atrair-nos a atenção, ensinava-nos a doutrina. Nessa época, estaríamos ai por volta de 1534, ainda não tinha reunido o Concilio de Trento para sair a terreiro contra o protestantismo que campeava na Europa. Ainda não havia surgido a nova formulação da doutrina, a remodelação dos métodos de ensinar que haviam de esclarecer os espíritos perturbados e incautos em face da heresia que alastrava. Não tardaria, com efeito, em resultado dessa esforçada e ingente mobilização dos mais doutos cérebros da Cristandade, a ver-se chegar aos prelos das nações católicas, em extraordinária profusão, as teses, os sermões, as homilias, os novos missais, os compêndios e esses pequenos livros, maravilha de síntese de toda a doutrina, que eram os catecismos. Bem me lembro de ver e folhear essas novidades nas bancas dos livreiros nas ruas buliçosas de Roma, de Veneza, de Trento, por toda a Itália. Grande impulsionador desse esforço de publicar os resultados do concílio, para os pôr em acção, foi o arcebispo de Milão, Carlos Borromeu, ele próprio autor de um catecismo que veio a lume em 1566, e no nosso Portugal recordo o zelo incansável de frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo e senhor de Braga, primaz das Espanhas, que, entre outras obras de cristianíssima doutrina, publicou em 1564 naquela cidade, por mandado de el-rei e em casa do tipógrafo régio António Mariz, um catecismo ou doutrina cristã e práticas espirituais, para uso não só dos sacerdotes que têm cargo de almas nas igrejas de sua obrigação, mas ainda dos mestrados de Santiago e de Avis, obra que foi depois várias vezes reeditada em Coimbra e em Lisboa. Eu e os livros entendemo-nos. Somos irmãos de solidão. Falo com eles e eles comigo.
Chamam-me. Uma ocasião entrei em casa do imprimidor Marcos Borges, que tem oficina ali por detrás da Ermidinha de Nossa Senhora da Palma, e de uma estante em que se enfileirava com outros ele chamou por mim, como se me puxasse pela manga, quando eu folheava outras obras: então não o via? O seu autor era meu conhecido e amigo, o arcebispo de Braga ... Também aí me chamou a atenção com insistência a Cartinha para Ensinar a Ler, com os Mistérios de Nossa Santa Fé, de um outro amigo meu, douto teólogo, frei João Soares, bispo de Coimbra e conde de Arganil. Obra maneirinha e leve, que se pode trazer na algibeira ou na manga do hábito e não como essas outras pesadonas, grossas, incómodas, que encontramos nas bibliotecas acorrentadas às estantes, pobres livros agrilhoados!... Outro catecismo, agora de Nossa Santidade o papa Pio V, pôs-se-me aos gritos a chamar por mim ao passar eu um dia pela Rua dos Espingardeiros, em frente da casa do livreiro João Lopes. É uma obrinha que por mandado do Ilustríssimo e Reverendíssimo Metropolitano arcebispo de Lisboa, o senhor Miguel Castro, foi tresladada do latim em linguagem pelo doutor em Teologia padre Cristóvão Matos e publicada na oficina de António Álvares, impressor do arcebispo.
Era uma das minhas muitas fraquezas essa do apego aos livros, mas acontecia que, quando eu saía a calcorrear Lisboa, sempre acudia alguém, o abade, o bibliotecário, a incumbirem-me de adquirir livros que iam enriquecer a livraria do convento. Agora sei que não era ocasionalmente. A doutrina, portanto, naquela época da minha meninice, era-nos ministrada à maneira velha e tradicional, cujas bases e orientação radicavam em obras muito antigas, como o tratado de nosso padre Santo Agostinho, De Catechisandis rudibus, os Discursos Catequísticos, de São Cirilo, a Oração Catequética, de São Gregório de Nissa. Muito da antiga tradição oral dos ensinamentos persistia, embora e já cada vez mais apoiada em textos sagrados que o leitor nos fazia ouvir e comentava em escólios conceituosos. Eram crescentemente evidentes os frutos que se estavam tirando dessa nova e maravilhosa invenção que é a arte da impressão de livros. Dizem alguns que é pau de dois bicos: os inimigos da nossa santa religião também escrevem e não desfalecem de publicar as suas ideias aleivosas e de assaltar a fortaleza da Fé! Bem as vi, nas terras por que passei, essas obras que saíram da pena de um Lutero, de um Zwínglio, de um Calvino e de outros autores». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT