«(…) A ideia, porém, tinha
esbarrado na resistência visceral da mãe, que nunca deixara de considerar Lilli
o seu bebé e ainda cantava à noite para ela dormir. Agora, caminhando de volta
para casa junto com Lilli e vendo o orgulho recém-adquirido na sua postura,
Mirina mal podia esperar para pôr tudo aos pés da mãe: a caça farta, as muitas
histórias, além da filha mais nova de volta dos confins selvagens ilesa e
sorridente, com a marca de sangue da caçadora na testa. Acha que elas vão assar
tudo ao mesmo tempo?, perguntou Lilli, interrompendo os pensamentos da irmã. Seria
um banquete e tanto. Apesar de algumas coisas serem tão pequenas que talvez nem
valham a pena, completou ela, baixando os olhos para um punhado de peixes minúsculos
pendurados no seu cinto por um fio de lã.
Na minha experiência, as menores
são as mais gostosas..., falou Mirina. Ela parou. As duas tinham feito a curva
perto do pasto, e o povoado de Tamash ficava logo à frente. Era ali que os
cachorros sempre vinham recebê-la, pois sabiam que a sua chegada anunciava
ossos e restos de carne. Só que nesse dia nenhum cachorro apareceu e, quando
Mirina parou para escutar, não ouviu nenhum dos barulhos habituais do povoado,
apenas os gritos roucos dos pássaros e um zumbido estranho e persistente, como
milhares de abelhas em volta de um arbusto de flores. Os únicos sinais de vida
eram algumas grossas colunas de fumaça a se erguer de algum lugar entre os
casebres rumo ao azul infinito. O que aconteceu?, indagou Lilli, arregalando os
olhos. O que ouviu? Não sei bem..., respondeu Mirina, sentindo cada pelinho do
corpo a se eriçar de apreensão. Porque não fica aqui? Ela segurou a irmã pelos
ombros e impediu-a de seguir em frente. Porquê? O que houve?
A voz da menina saiu esganiçada
e, quando Mirina começou a andar, ela foi atrás. Por favor, diga-me! Então
Mirina finalmente viu um dos cachorros. Era o filhote malhado que sempre vinha
dormir enrodilhado junto a seus pés durante os temporais, o filhote que ela
havia salvado e que às vezes a fitava com olhos quase humanos. Bastou uma
olhada no cachorro, na sua atitude arredia e ao mesmo tempo obsequiosa, nos
seus ganidos nervosos, para Mirina entender tudo. Não toque nele!, gritou
quando Lilli deu um passo à frente com os braços estendidos. Mas era tarde
demais. Sua irmã já segurava o filhote pelo pescoço e o afagava com afecto. Lilli!,
Mirina pôs a irmã de pé com um puxão brusco. Não ouviu o que eu falei? Não
toque em nada.
Só
então a expressão da menina demonstrou que ela começava a entender o que
acontecera. Por favor, falou Mirina, suavizando tanto a voz que ela chegou a
falhar. Seja boazinha e fique aqui enquanto eu... Ela lançou outro olhar aflito
na direcção das casas silenciosas à frente. Enquanto eu vou ver se está tudo
bem. Mirina entrou no povoado segurando firme a lança com as duas mãos e olhando
para todos os lados em busca de sinais de violência. Estava certa de que o
lugar tinha sido atacado por alguma tribo rival ou por animais selvagens. Preparou-se
para imagens horrendas, mas não podia ter previsto o que encontrou. Uma voz
rouca e cheia de ódio chegou aos seus ouvidos vinda de um dos casebres e, um
segundo depois, uma mulher corcunda emergiu de lá com o corpo coberto de suor. Foi
a sua mãe quem fez isso... Ela cuspiu no chão, a saliva vermelha de sangue. A
bruxa da sua mãe! Nena, amiga... Mirina deu alguns passos para trás. O que
aconteceu aqui? A mulher tornou a cuspir. Não ouviu o que eu disse? A sua mãe amaldiçoou-nos.
Ela invocou uma peste e disse que mataria todo aquele que não aprovasse o seu
comportamento de pu…». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora
Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
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