quinta-feira, 9 de agosto de 2018

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «Quando éramos pequenas, Rebecca e eu tínhamos uma pequena caixa de recordações num dos cantos do sótão escuro, escondida debaixo da janela, e entrávamos ali de fininho para examinar…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Foi só depois de se aposentar que meu pai passou a dedicar-se ao jardim. Ele, que nunca fora muito afeito a mudanças, ainda contava histórias nostálgicas sobre aquele pequeno pedaço de terra que estivera por tantos anos na família. As maçãs nunca tinham o sabor tão autêntico quanto as que ele recordava da infância, tampouco as framboesas eram tão abundantes quanto no tempo em que ele era pequeno, quando colhia cestos e mais cestos, que levava para a sra. Winterbottom na cozinha. Essas imagens românticas eram sempre editadas com cuidado de modo a excluir os detalhes inoportunos. O pai que vivia para o trabalho e a mãe hospitalizada não eram citados. Desaparecia também o facto de que a sra. Winterbottom, a governanta, era uma mulher sisuda e sempre paramentada com luvas de plástico, muito eficiente no quesito higiene, porém incapaz no que fosse relacionado a ternura. Sobravam apenas um menininho e o seu jardim, emoldurados pela folhagem da época e salpicados por uma levíssima camada de purpurina.
Enfiei a cabeça para dentro do porão e vi, conforme esperado, um punhado de mulheres sentadas em bicicletas ergométricas posicionadas de frente para um vídeo de exercícios. Olá, mãe! E olá, senhoras! Olá, meu bem! A minha mãe estava usando a camiseta de manga comprida amarela que eu lhe havia dado de Natal e uma bandolete segurava os seus cabelos curtos e grisalhos. Ela era uma das únicas mulheres que eu conhecia que não temia ficar suada e, por esse facto ser fonte de imenso constrangimento, ao longo dos anos havia-se transformado numa das coisas que eu mais admirava nela. Faltam dez minutos!
Enquanto eu tornava a subir a escada, vi o meu pai ainda mexendo no comedouro de pássaros e senti um súbito calor de nervosismo brotar no estômago. Dez minutos. Justo o que eu precisava. O escritório do meu pai era um cubículo empoeirado provido de todo o aparato de um cavalheiro vitoriano. As paredes eram cobertas de alto-a-baixo por estantes arqueadas pelo peso e, espalhados entre os livros, havia tesouros especiais: insectos dentro de caixas de madeira, vermes e cobras preservados em vidros, pássaros extintos com olhos de vidro brilhantes a observar do alto das prateleiras, feito predadores, em uma saliência rochosa. Até onde a minha memória alcançava, o cheiro daquele espaço tinha um perigoso poder de atracção, um aroma de história, conhecimento e transgressão infantil.
Eu estava mais velha, porém não menos nervosa, então esbarrei por acidente numa caneca mal posicionada sobre a mesa. Por alguns segundos de aflição, canetas, réguas e clipes espalharam-se por todo o lado. Atabalhoada e nervosa de culpa, recoloquei tudo de volta na caneca e tornei a posicioná-la sobre as contas do mês, onde era o seu lugar. Meu pai apareceu na porta. Olá!, exclamou ele, unindo as duas sobrancelhas peludas. Será que eu deveria ficar lisonjeado por achar a minha correspondência tão interessante? Mil desculpas, balbuciei. Estava procurando a minha certidão de nascimento. Ele desfez o cenho franzido. Ah! Deixe-me ver... Sentando-se pesadamente na cadeira de escritório, ele abriu e fechou algumas gavetas antes de encontrar o que procurava. Voilà! Pegou uma pasta novinha com o meu nome escrito. Os seus documentos estão aqui. Andei fazendo uma arrumação. Por fim, o meu pai sorriu. Pensei que seria bom poupá-la da bagunça. Encarei-o, tentando decifrar o que havia por trás do sorriso. O senhor não andou...,jogando coisas fora, andou? Ele piscou algumas vezes, sem entender o meu súbito interesse pelos seus projectos. Nada importante, eu acho. Pus quase tudo dentro de uma caixa. Os documentos de família, essas coisas. Talvez queira queimar, mas..., vou deixar a decisão por sua conta. A porta do sótão rangia. Sempre fora quase impossível visitar aquele espaço em segredo.
Quando éramos pequenas, Rebecca e eu tínhamos uma pequena caixa de recordações num dos cantos do sótão escuro, escondida debaixo da janela, e entrávamos ali de fininho para examinar o seu conteúdo sempre que nos atrevíamos. Havia um sabonetinho de um hotel em Paris, uma rosa seca de um buquê de noiva, uma bola de golfe da propriedade dos Moselanes, além de alguns outros tesouros que não podiam cair em mãos erradas. O que as duas andam a fazer no sótão?, perguntara a minha mãe certo dia durante o almoço, fazendo Rebecca derramar limonada na mesa da cozinha. Nada, respondera eu, com uma inocência forçada. Então brinquem lá fora. A minha mãe precisara de quase um rolo de toalha de papel para limpar a bagunça de Rebecca, mas não fizera nenhum comentário. Afinal de contas, minha amiga era filha do pároco. Não gosto que fiquem naquele lugar empoeirado». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
                                                                      
Cortesia de EArqueiro/JDACT