Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Foi
só depois de se aposentar que meu pai passou a dedicar-se ao jardim. Ele, que
nunca fora muito afeito a mudanças, ainda contava histórias nostálgicas sobre
aquele pequeno pedaço de terra que estivera por tantos anos na família. As maçãs
nunca tinham o sabor tão autêntico quanto as que ele recordava da infância,
tampouco as framboesas eram tão abundantes quanto no tempo em que ele era
pequeno, quando colhia cestos e mais cestos, que levava para a sra. Winterbottom
na cozinha. Essas imagens românticas eram sempre editadas com cuidado de modo a
excluir os detalhes inoportunos. O pai que vivia para o trabalho e a mãe hospitalizada
não eram citados. Desaparecia também o facto de que a sra. Winterbottom, a
governanta, era uma mulher sisuda e sempre paramentada com luvas de plástico,
muito eficiente no quesito higiene, porém incapaz no que fosse relacionado a
ternura. Sobravam apenas um menininho e o seu jardim, emoldurados pela folhagem
da época e salpicados por uma levíssima camada de purpurina.
Enfiei a cabeça para
dentro do porão e vi, conforme esperado, um punhado de mulheres sentadas em
bicicletas ergométricas posicionadas de frente para um vídeo de exercícios. Olá,
mãe! E olá, senhoras! Olá, meu bem! A minha mãe estava usando a camiseta de
manga comprida amarela que eu lhe havia dado de Natal e uma bandolete segurava os
seus cabelos curtos e grisalhos. Ela era uma das únicas mulheres que eu
conhecia que não temia ficar suada e, por esse facto ser fonte de imenso
constrangimento, ao longo dos anos havia-se transformado numa das coisas que eu
mais admirava nela. Faltam dez minutos!
Enquanto eu tornava a
subir a escada, vi o meu pai ainda mexendo no comedouro de pássaros e senti um
súbito calor de nervosismo brotar no estômago. Dez minutos. Justo o que eu
precisava. O escritório do meu pai era um cubículo empoeirado provido de todo o
aparato de um cavalheiro vitoriano. As paredes eram cobertas de alto-a-baixo
por estantes arqueadas pelo peso e, espalhados entre os livros, havia tesouros especiais:
insectos dentro de caixas de madeira, vermes e cobras preservados em vidros,
pássaros extintos com olhos de vidro brilhantes a observar do alto das prateleiras,
feito predadores, em uma saliência rochosa. Até onde a minha memória alcançava,
o cheiro daquele espaço tinha um perigoso poder de atracção, um aroma de
história, conhecimento e transgressão infantil.
Eu estava mais velha,
porém não menos nervosa, então esbarrei por acidente numa caneca mal
posicionada sobre a mesa. Por alguns segundos de aflição, canetas, réguas e
clipes espalharam-se por todo o lado. Atabalhoada e nervosa de culpa, recoloquei
tudo de volta na caneca e tornei a posicioná-la sobre as contas do mês, onde
era o seu lugar. Meu pai apareceu na porta. Olá!, exclamou ele, unindo as duas
sobrancelhas peludas. Será que eu deveria ficar lisonjeado por achar a minha
correspondência tão interessante? Mil desculpas, balbuciei. Estava procurando a
minha certidão de nascimento. Ele desfez o cenho franzido. Ah! Deixe-me ver... Sentando-se
pesadamente na cadeira de escritório, ele abriu e fechou algumas gavetas antes
de encontrar o que procurava. Voilà!
Pegou uma pasta novinha com o meu nome escrito. Os seus documentos
estão aqui. Andei fazendo uma arrumação. Por fim, o meu pai sorriu. Pensei que seria
bom poupá-la da bagunça. Encarei-o, tentando decifrar o que havia por trás do
sorriso. O senhor não andou...,jogando coisas fora, andou? Ele piscou algumas
vezes, sem entender o meu súbito interesse pelos seus projectos. Nada
importante, eu acho. Pus quase tudo dentro de uma caixa. Os documentos de
família, essas coisas. Talvez queira queimar, mas..., vou deixar a decisão por
sua conta. A porta do sótão rangia. Sempre fora quase impossível visitar aquele
espaço em segredo.
Quando éramos pequenas, Rebecca e eu tínhamos uma pequena caixa de
recordações num dos cantos do sótão escuro, escondida debaixo da janela, e entrávamos
ali de fininho para examinar o seu conteúdo sempre que nos atrevíamos. Havia um
sabonetinho de um hotel em Paris, uma rosa seca de um buquê de noiva,
uma bola de golfe da propriedade dos Moselanes, além de alguns outros tesouros
que não podiam cair em mãos erradas. O que as duas andam a fazer no sótão?,
perguntara a minha mãe certo dia durante o almoço, fazendo Rebecca derramar
limonada na mesa da cozinha. Nada, respondera eu, com uma inocência forçada. Então
brinquem lá fora. A minha mãe precisara de quase um rolo de toalha de papel
para limpar a bagunça de Rebecca, mas não fizera nenhum comentário. Afinal de
contas, minha amiga era filha do pároco. Não gosto que fiquem naquele lugar
empoeirado». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN
978-858-041-543-0.
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