«(…) Eu
precisava voar até Londres imediatamente. Sendo esta uma viagem urgente, não
planeada e puramente pessoal, providenciar um esquema de segurança seria uma
tarefa complicada, diferentemente de participar de uma conferência, quando tudo
era coordenado com a polícia com semanas de antecedência. Eu sabia que não
seria sábio simplesmente partir, acompanhada pelos homens que costumam proteger-me
nos Estados Unidos. Esses homens não estavam familiarizados com o Reino Unido e
não poderiam andar armados. Se fosse descuidada no meu planeamento, poderia
colocar em risco tanto a mim como outras pessoas. Telefonei para alguns amigos
na Europa que pensei serem influentes e pedi a eles que tentassem ajudar-me a
conseguir a protecção necessária para fazer a viagem. Eles passaram muitas
horas tentando ajudar-me, aparentemente sem sucesso. Um amigo ouviu de um funcionário
do governo britânico que, como nasci na Somália, eu deveria pedir ajuda à embaixada
somali; ela poderia entrar em contacto com o ministério britânico das Relações Exteriores
e solicitar ajuda para providenciar a minha segurança. Essa lógica burocrática absurda
poderia ser considerada cómica noutras circunstâncias, mas não diante da necessidade
de chegar a Londres para ver meu pai moribundo.
Quando o meu avião partiu eu não
sabia se poderia contar com a protecção de seguranças após a aterragem. Mas
isso não importava mais; após dias de espera o meu único medo era o de chegar
tarde demais. Eu sabia que se meu pai morresse não permitiriam que eu visse o
corpo dele. Ele seria levado por parentes homens para ser lavado e enterrado
num prazo de 24 horas. As mulheres não podem ficar ao lado do túmulo durante
uma cerimónia fúnebre muçulmana. Acredita-se que a presença delas é uma distracção;
elas podem-se tornar histéricas e até se jogar na cova para ficar junto do
corpo. Seria inapropriado tentar participar da cerimónia. Meu pai tinha uma
atitude contraditória em relação às mulheres. Ele adoptou algumas ideias modernas
em relação à alfabetização, insistiu para que a sua primeira esposa
frequentasse a universidade e defendeu que eu e minha irmã Haweya fôssemos à
escola quando minha mãe resistiu à ideia. Ele acreditava na força das mulheres
e insistia repetidas vezes que o nosso papel era valioso e importante. Mas,
conforme ficou mais velho, tornou-se mais ortodoxo nas convicções islâmicas
segundo as quais devemos nos cobrir, nos casar e nos submeter ao nosso marido.
Apesar de suas opiniões frequentemente excêntricas, nem mesmo meu pai teria tolerado
a presença de uma mulher num funeral.
Quando cheguei a Heathrow, o
aeroporto de Londres, um grande carro preto da embaixada holandesa estava
esperando para me receber; outro veículo, menor e mais seguro, trazia homens da
Scotland Yard. Fomos directamente para o hospital. Agora, para meu alívio, o meu
pai estava vivo diante de mim. Pobre abeh.
Estava amarrado a um leito hospitalar, velho, vulnerável, doente. Sorriu
profundamente ao ver-me e então cochilou, acordando de tempos em tempos em
busca de ar, fazendo repetidas tentativas de falar, mas sem conseguir emitir nenhuma
palavra, somente um ofegante Ash hah. Então ele me mandou beijos com um movimento
dos lábios e apertou a minha mão com toda a força que lhe restava. Senti o peso
do fardo de tudo aquilo que não havia dito a ele e dos anos que desperdiçamos afastados.
As únicas palavras que fui capaz de encontrar foram mensagens simplórias de
amor, e eu as repeti de novo e de novo. Era tarde demais para outra coisa.
Não
fui ao hospital em busca de absolvição. Já não acreditava na ideia de que se
fizesse a coisa certa, como cumprir o meu dever de buscar o perdão dos meus
pais e conquistar a sua bênção, meus pecados seriam lavados. Talvez minha
presença nem mesmo o agradasse muito, pois ele veria que a filha vestia calças
e não usava lenço sobre a cabeça. Fui até lá apenas pela luz em seus olhos,
para que me reconhecesse, pelo amor dele por mim e pelo amor que sentia por ele,
um reconhecimento mútuo do facto de que sempre fomos preciosos um para o outro.
Ele usava as suas últimas reservas de energia na tentativa de me dizer alguma
coisa. Nunca saberei o que era. Para meu pai, Deus era o criador e o mantenedor,
mas Deus também era feroz e cheio de ira. No fundo, compreendi que, no seu
leito de morte, ele estava aterrorizado por eu ter incorrido na ira de Alá ao
ter rejeitado a sua fé. O pai sempre nos ensinou que aqueles que Deus não
perdoou levarão uma vida miserável na terra e queimarão no fogo eterno do além.
Mas, apesar das nossas crenças não se terem reconciliado, o que seria impossível,
pois são de mundos diferentes, acho que meu pai me perdoou. No fim, ele permitiu
que o seu sentimento de amor paterno transcendesse a adesão às exigências do
seu Deus inclemente». In Ayaan Hirsi Ali, Nomad, From Islam to America,
Nómade, tradução de Augusto Calil, Companhia das Letras, 2010, ISBN
978-858-086-374-1 e / ou In Ayaan Hirsi Ali, Nómada, Galaxia Gutenberg, 2011, ISBN
978-848-109-928-7.
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