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O café que se tomava após as refeições era colhido na fazenda. Nunca havia
aguardente à mesa, mas sempre um licor de cacau, ou de anis, importados. Na
ceia, como no primeiro almoço, comíamos angu de caroço, broas de milho seco,
canjica de milho verde, pamonha, raramente faltando macaxeira e inhame, e
batata-doce, cozida ou assada. Ao lado da casa-grande ficava um pomar, rodeado
por uma cerca viva de limoeiros. Dava laranja, banana-maçã, carambola,
graviola, araticum, maçaranduba, jambo amarelo, abacaxi, jatobá, jenipapo,
cajá, uma infinidade de frutas, lembro-me de todas elas, das cores das suas
cascas, de seus perfumes, das épocas em que floresciam e frutificavam e de
quais passarinhos gostavam de bicar essa ou aquela. Cultivadas apenas para os
membros da família e os agregados, as frutas eram tantas que até as levávamos para
serem vendidas nas feiras aos sábados, no povoado de Cachoeira, assim como
farinha de mandioca, milho verde, fava, caldo de cana, mel, enfim, tudo que não
era usado na alimentação dos moradores da casa-grande e dos cassacos. Em torno
do pomar, ficavam as roças bem cuidadas, que produziam com fartura. A vida no
engenho tinha como centro a mesa de mogno da cozinha.
Quando saí do sobrado do cais Mauá, respirei fundo.
O céu tinha-se tornado cinza. Os meus encontros com Augusto eram cada vez mais
sufocantes. Um ano depois dessa visita, Augusto publicou o seu livro de
poesias, chamado desafiadoramente de Eu, apenas isso. Eu.
Soube da notícia quando entrei no Castellões, de
madrugada, após um sarau. Boémios discutiam o livro de Augusto, poucos o
defendiam, a maioria tinha asco, repulsa. Diziam frases irónicas, atiravam
setas envenenadas de zombaria e remoque, pareciam ofendidos, destemperados, como
se tivessem sido atacados pessoalmente na sua honra. Simbolista, dizia um;
romântico, dizia outro; parnasiano, um terceiro. Um escrínio de ofensas ao bom
gosto. Discípulo de Rimbaud? Jamais! Envergonharia Verlaine, causaria
repugnância a Mallarmé. Vamos esperar as Causeries du Lundi do nosso
Saint-Beuve, dizia alguém. Os olímpicos vão desferir pancadaria grossa. Uma pedra no manso lago azul. Bilac vai
odiá-lo, ele quebra a ogiva fúlgida e as colunatas do templo do santo
pontífice. O título é escandaloso! Palavras plebeias, antipoéticas. Original! Único!
Extraordinário! Perfeito! O que diriam as alunas dos cursos de declamação? Foi
o assunto da madrugada. Ouvi tudo, calado, bebendo vermute.
No dia seguinte acordei antes do meio-dia para
comprar O País. Quando abri a página na qual se escreviam tolices sobre
a literatura de sorriso da sociedade, o meu coração palpitou: vi a crítica
feita por Óscar Lopes. Era uma nota pequena, ao lado de um longo elogio ao
livro do Nilo Peçanha e amáveis referências, também derramadas, aos poemas de
Canto e Melo. Para muita gente, Augusto pareceria apenas um desequilibrado.
Algumas das composições eram perfeitamente estranhas e caracterizadas por um
descaso por tudo quanto constituía a moeda corrente, dizia o crítico. Chocado,
após louvar a originalidade do livro, Óscar Lopes aconselhava Augusto a não se
entregar a assuntos que repugnam o coração e desafiam as normas. Simbolistas
decidiram apoiar Augusto, escrevendo notas simpáticas no Fon Fon, no Correio da
Manhã. O grande Raul Pederneiras e Osório Duque Estrada, o ferrabrás da
crítica, escreveram sobre o Eu, um facto digno de admiração, mesmo sabendo-se
que eram conhecidos de Augusto pois tinham participado conjuntamente de uma
comissão didáctica. Dizia Pederneiras que Augusto é um grande talento
transviado pelo cientificismo. Mostrava a sua fotografia caminhando na rua,
solitário, magro, de casaca e guarda-chuva preto, o velho chapéu-coco. Falava
em extravagante volume de versos, em que não poucas pérolas se confundem com o
grosso cascalho dos exotismos estapafúrdios. A cada passo minguava a poesia e
avultavam as aberrações. Augusto era um poeta abortado do ventre da filosofia.
O que estaria ele sentindo diante daqueles
comentários?, jogado entre os malditos, os inconformados. Aberrante!
Inclassificável! Um caso patológico! Negra putrefação! Indigestão literária de
um pantagruel das palavras! Electrizante! Assombroso! Teratológico!
Desequilibradíssimo! Extravagante pirotecnia japonesa. Parece que o homem é
doido! Aleijões abortados de uma fantasia delirante! Erros de linguagem. O
terror como Leitmotivo Versos duros. Asquerosidade. Abstruso! Chulo!
Abominações. Horror. Sorri no meu íntimo: finalmente Augusto estava trilhando o
caminho dos grandes incompreendidos. Corri até à Garnier e comprei um exemplar
do Eu. Conhecia de antemão alguns de seus poemas, mas quando me entreguei à
leitura, ah, que cadência majestosa, que êxtase, a que elevadas esferas me
levou o poeta, enquanto me jogava sem piedade nos precipícios dos sentimentos
mais verdadeiros, nos enigmas do universo; que total negação da existência
material, que mortificação moral, que inteligência capaz de grandes
cometimentos!» In Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN
857-164-454-3.
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