O Contrato
da Carne
«(…)
O rosto do barão continuava nítido na sua mente: bigodes e cabeleira farta, a
testa estreita. Sob os olhos, bolsas membranosas, dobras e sulcos longitudinais
como o dorso de uma lagarta. Uma rajada forte de vento fez bater a janela,
assustando Mariana. Com um arrepio imaginou o seu pai irrompendo na sala; não
parava de pensar nele e sentia o rosto em brasa. Quis conversar com alguém.
Aurora adormecera numa poltrona. Ouviu o ranger do portão e foi à janela. Tenório
cruzava o alpendre, pisando com leveza o chão xadrez de granitos. Nuvens pairavam
no céu, prenunciando chuva. O mar parecia um enorme buraco sem fundo, cortado
por rastos de pequenas embarcações de pesca. Luzes espaçadas tremulavam nas ruas.
No jardim as boninas flutuavam com as suas grandes flores de corolas brancas
abertas. Tenório viu a baronesa à janela e acenou. O que houve?, disse Mariana.
Preciso falar-vos.
Tenório subiu as escadas. Mariana
acordou Aurora e mandou-a deitar-se no quarto. A criada, sonolenta, cumpriu a
ordem murmurando como uma cabeça falante do relojoeiro Gastão. Perdão pela hora,
disse Tenório, ao entrar na sala, ofegante. Mas é que estive andando atrás de informações.
Cheirava a perfumes femininos, suor. As botas estavam sujas de areia. Tinha os
olhos cansados e um sorriso culposo que mostrava dentes velhos manchados de
vinho. Tive muito trabalho, mas consegui, disse Tenório. Depois andei em palácio,
nas tabernas e na alfândega. O seu hálito fétido causou em Mariana uma sensação
de repugnância. Não deveis ir para as Minas, disse o amanuense. Eles estão matando
os portugueses. Quem está a matar os portugueses? Andaste a beber novamente? O
problema, disse Tenório, recompondo-se para ser mais persuasivo, desde que descobriram
o ouro, de todos os lugares do mundo homens ambiciosos e sem escrúpulos
partiram para o Sertão dos Cataguases. As pessoas que moram lá não prestam. E as
que moram aqui? Quem presta? O homem é sempre o mesmo. Mas aqui há pessoas melhores.
Nas Minas habitavam soldados desertores,
negros fugidos, homens que abandonaram as suas famílias, tripulações amotinadas,
mulheres desonestas, frades desfradados, lavradores que largaram as suas
terras. O lugar é muito perigoso, concluiu Tenório. E das três regiões, a mais
inobediente é a das Gerais, onde está o vosso pai. Essa região assim era
chamada por não estar sujeita às leis que disciplinavam a distribuição das
datas de mineração. Estabelecia-se a propriedade de uma jazida por posse, ou por
prioridade. Mas eu preciso ver o meu pai, disse Mariana. Se é pela herança,
vossenhora não necessita partir, ela vos será entregue de qualquer maneira.
Podemos mandar um procurador, com alguns escravos fortes. Eu mesmo posso ir. Ele
está morrendo, senhor Tenório. Mariana sentou-se na poltrona, quase sem forças,
dominada por uma sensação martirizante de que a sua vida agora dependia de um
gesto, o qual não sabia se seria capaz de fazer.
O que dizer de um lugar onde uma
cesta de biscoitos pode custar o mesmo que um cavalo?, disse Tenório. E no dia
seguinte uma rês podia valer três negras cozinheiras. Avaliava-se uma pistola
como um queijo. No Inverno trocava-se um par de meias de lã por uma data num
riacho aurífero. É a loucura, dona Mariana, a loucura!
Os que acumulavam grande quantidade
do metal precioso, minerando, vendendo, fazendo contrabando, na sua maioria entregavam-se
a deleites e regozijos. Gastavam o seu dinheiro com mulheres, tabaco,
aguardente, armas. Passavam os dias jogando e as noites a embriagarem-se.
Andavam escoltados por tropas armadas cometendo actos violentos e impunes. Há
mulheres nas Minas? Quero dizer, senhoras?, damas?, perguntou Mariana. O que
mais se vê são índias, negras ou mestiças vagando seminuas pelos arraiais,
cobertas de pele e ouro, com os cabelos soltos, carregando fachos e dando
urros, entregando-se a toda sorte de excessos nos rituais de fornicação. Os
homens sempre sabem onde achar essas mulheres, Tenório disse em tom
confessional. Farejam-nas, assim como pressentem o ouro. Onde há ouro há
mulheres de vida licenciosa». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora
Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.
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