O
Contrato da Carne
«(…) O lugar abrigava uma corja
de errantes e vadios, de quadrilhas hostis, ferozes, gananciosas. Mesmo os principais
viviam de lugar em lugar, como os filhos de Israel no deserto. Respeitavam
apenas a força dos músculos ou da pólvora. Os paulistas que residiam nas Minas
julgavam-se donos daquilo tudo ali, do ouro, das águas, das terras, das
montanhas, das florestas, do céu e das nuvens. Até mesmo do ar que respiravam. Os
portugueses, os baienses, os pernambucanos, que ali eram chamados de
forasteiros, tinham que se contentar com as piores repartições dos riachos auríferos.
Todos os chefes no lugar eram paulistas. Além de suportarem o domínio dos
naturais de São Paulo, os portugueses, intimidados, tinham que ouvir calados as
insolências dos bastardos e dos tapanhunas que andavam à proa dos potentados
adversários. Os escravos tupis dos paulistas e os negros africanos dos
portugueses brigavam nas ruas. Não só os pobres, mas também os ricos
descompunham e contendiam com os seus inimigos. Todos andavam armados com
pistolas, facas, clavinas. Os paulistas saíam em grupos, tocando caixa e
trombeta, gritando contra os reinóis. Fora daqui! Para casa!
Os lusitanos amedrontavam-se e fugiam.
Não é lugar para nenhum reinol, quanto mais uma fidalga, concluiu Tenório.
Vossenhora é portuguesa, ireis sofrer com as opressões. Aqui todos brigam,
também; todos se desentendem. Que diferença há entre o Sertão dos Cataguases e
o resto do mundo, ao final? O ouro.E o que mais soubestes? Que o senhor
Valentim é paulista. Paulista? Pode ser ladrão, violador de mulheres, falsário,
judeu... Não, judeu, ele não é. Como sabeis? As rameiras conhecem. Tenório,
agitado, pisava com as suas botas sujas no tapete de damasco. Pode ser uma
cilada. Não acredito que o senhor Valentim seja mau, disse Mariana. Como posso
aconselhar a vossa ida? Andar pelos matos com um natural da terra... Ele está ao
serviço do meu pai. Parece uma onça de pernas compridas. O que há de mal em ser
paulista? São selvagens, têm sangue misturado, vivem na desordem, cultivam o
nomadismo e a crueza.
Ele tem bons modos, disse Mariana.
Sabe falar. Com outras roupas, pareceria fidalgo. Ouvi dizer que há muitos
paulistas de bons troncos, até mesmo aristocratas. São todos rudes e iletrados.
Ficaram em silêncio. Tenório batia insistentemente a ponta do pé no chão. Estivestes
com dom Fernando no palácio? Tenório aquiesceu. Dissestes alguma coisa a ele, sobre
meu pai? Não. Nada. Ele perguntou por mim? Sim, como sempre. Mariana pegou nos
papéis com as contas, que estavam sobre a mesa, e guardou-os. Essa história de
herança deve ser mentira. Tenório insistiu. Vosso pai deserdou-vos. Conheço-o muito
bem. As pessoas modificam-se com o tempo, senhor Tenório. Porque o senhor
Valentim iria mentir? Porque motivo viria chamar-me? Como acreditais num
sujeito que se chama Valentim e tem aquela triste cara de ovelha desgarrada?
Pode ser até mesmo nome falso. Deve chamar-se Borrego. Mariana sorriu da tolice
de seu amanuense.
Ouviram uma gritaria na rua e foram
à varanda. Pessoas corriam pela rua Direita com tochas nas mãos. Sabeis quem
fugiu para as Minas?, disse Tenório. Bento Amaral Coutinho. Matou um plantador de
cana com sessenta estocadas, e dessa vez a sua família nada poderá fazer; nem sempre
o dinheiro resolve. Os irmãos do morto juraram vingança. O povo está correndo
para a casa de dom Fernando, exigindo a prisão do assassino. Não há ninguém
mais agressivo no Rio de Janeiro do que Bento Amaral. Mas tenho uma dívida de
gratidão para com ele, ajudou-nos quando da morte do meu marido. Gostaria de
poder retribuir-lhe de alguma forma. Tarde demais, disse o amanuense e saiu,
tropeçando nos próprios pés». In Ana Miranda, O Retrato do Rei, Editora
Schwarcs, Companhia das Letras, 1991, ISBN 978-857-164-190-7.
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