quarta-feira, 8 de agosto de 2018

A Virgem e o Cigano. DH Lawrence. «O cigano observou-a a entrar na sua casa rolante. O que a cigana lhe disse, nunca ninguém o soube. Para os outros, a espera foi muito longa. O crepúsculo foi-se aprofundando…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Olhou para Yvette quando passou por ela, fixando-a directamente nos olhos, com a sua ousada, mas impudica mirada de pária. Dentro dela, houve qualquer coisa forte que a fez resistir ao olhar, mas a superfície do eu corpo pareceu transformar-se em água. No entanto, a parte dela que tinha resistido registou as linhas peculiarmente puras do rosto dele, o seu nariz direito e delicado, o traçado das faces e das fontes, a curiosa e suave pureza de todo o seu corpo moreno, recortado na fazenda verde: uma pureza que era uma troça viva. Enquanto ele passou lentamente por ela, nos seus flexíveis quadris, ainda lhe parecia que ele era mais forte do que ela. De todos os homens que ela vira, este era o único que era mais forte do que ela, dentro da sua própria espécie de força, da sua própria espécie de compreensão. Assim, cheia de curiosidade, subiu os degraus da carroça atrás da mulher, com as abas do bem talhado casaco castanho a balançarem e quase expondo-lhe os joelhos, por debaixo do vestido verde-claro. Tinha umas pernas bonitas, compridas, que davam grandes passadas, umas pernas mais para o delgado do que para o gordo, e usava boas meias de algodão com um curioso desenho em dois tons de castanho, um claro e um escuro, que sugeriam as pernas de um qualquer animal exótico.
No alto dos degraus, Yvette deteve-se por um instante e virou-se para os outros, com um ar jovial, dizendo naquele seu tom simultaneamente inocente e senhoril, e sem cerimónias: farei por não demorar. A sua gola de pele cinzenta estava aberta, mostrando a garganta macia e o vestido de um verde muito claro, o chapéu pequenino e castanho puxado quase até às orelhas, rodeando-lhe o rosto fresco e gentil. Havia nela um ar simultaneamente suave e, no entanto, dominador, inconsciente. Sabia que o cigano se virara para olhar para ela. Tinha consciência da sua nuca trigueira, o cabelo negro bem penteado. O cigano observou-a a entrar na sua casa rolante. O que a cigana lhe disse, nunca ninguém o soube. Para os outros, a espera foi muito longa. O crepúsculo foi-se aprofundando e transformando em escuridão e começou a ficar húmido e frio. Da chaminé da segunda carroça saía fumo e um cheiro a boa comida. O cavalo foi alimentado e enrolaram à sua volta um cobertor amarelo; os dois ciganos falavam um com o outro à distância, em voz baixa. Havia uma peculiar sensação de silêncio e de intimidade, naquela pedreira escondida e solitária.
Finalmente, a porta da carroça abriu-se e Yvette apareceu, inclinada para a frente e descendo os degraus com as suas longas e esbeltas pernas de feiticeira. Quando ela surgiu à luz do crepúsculo, havia à sua volta uma espécie de silêncio enfeitiçado, condescendente. Demorei muito tempo?, perguntou, com o seu ar ausente, sem olhar para ninguém e escondendo os seus sentimentos por detrás daquelas suas maneiras indecisas e suaves. Espero que não se tenham aborrecido!, continuou. Que bom que seria tomar um chá, agora! Vamos? Entra para o carro, disse Bob. Eu pago! As compridas saias de alpaca da cigana, de um verde-metálico, baloiçaram nas escadas. Ergueu-se com todo o seu esplendor: era uma mulher alta e com um ar triunfante e o rosto animalesco. O lenço de casimira cor-de-rosa, com rosas vermelhas estampadas, estava a escorregar-lhe para um lado, por cima do seu cabelo negro e encrespado. Olhou para os jovens, à luz do crepúsculo, com ousada arrogância. Bob colocou-lhe duas meias coroas na mão. Dê-me um pouco mais, para lhe dar sorte, para dar sorte à sua jovem senhora, pediu-lhe, numa voz aduladora, como um lobo a atrair uma presa. Mais uma moeda de prata, para lhe dar sorte. Já tens uns xelins, para dar sorte, isso basta, disse Bob calmamente, enquanto avançavam para o carro. Uma moedinha de prata! Só uma moedinha, para lhe dar sorte no amor!
Yvette, com um súbito, longo e surpreendente movimento das suas pernas compridas, virou-se quando já estava a entrar no carro e com o longo braço estendido deu uma passada e pôs qualquer coisa na mão da cigana, depois, virou-se e dobrou-se para entrar no carro. Felicidades, para a bela e jovem senhora, com as bênçãos da cigana, ouviu-se a sugestiva e semitrocista voz da mulher. O motor roncou, tornou a roncar com mais força e arrancou. Leo acendeu os faróis e a pedreira com os ciganos desapareceu imediatamente na escuridão da noite. Boa noite!, gritou a voz de Yvette, quando o carro começou a andar. A sua voz foi a única que se ouviu, esganiçada, alegre e impudente no seu tom de desinteresse. Os faróis iluminaram o caminho de pedra. Yvette, tens de nos dizer o que é que ela te contou, gritou Lucille, perante o silêncio de Yvette. Oh, não foi nada de especial, disse Yvette, com uma falsa cordialidade. As coisas do costume: um homem moreno que me dará boa sorte, um loiro que me dará má sorte; uma morte na família, que se for a da avó não será assim uma coisa tão terrível; que casarei quanto tiver vinte e três anos, que terei montes de dinheiro e montes de amor e dois filhos. Tudo muito bonito, mas são demasiadas coisas boas, sabem, para poderem ser verdadeiras. Oh, mas, então, por que é que lhe deste mais dinheiro? Oh, bem, porque quis! Com gente daquela, temos de nos mostrar um pouco liberais...» In DH Lawrence, A Virgem e o Cigano, 1926, Editora Assírio & Alvim, 1984, colecção O Imaginário, ISBN 978-972-370-164-7.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT