A
Sucessão (1259-1263)
«(…)
Recordemos que Afonso, filho menor de Afonso II, se tinha casado em França com
Matilde, condessa de Bolonha, viúva de Filipe de Aurepel, filho do rei Filipe
Augusto, da qual, segundo parece, não tinha descendência. Deixou Matilde no seu
condado quando veio para Portugal. Ora em Maio de 1253 chegara a acordo com o
rei Afonso X de Castela e desposara sua filha bastarda dona Beatriz. Nem ele
nem seu sogro parece terem-se preocupado muito com a situação de bigamia em que
assim se colocava devido ao casamento anterior nem com o crime de incesto
(segundo a lei canónica) devido ao parentesco dos cônjuges. Afonso III também
não recuou diante da humilhação de se casar com uma bastarda. Sempre era filha
de rei. De resto, provavelmente, muito estimada pelo pai, entre outras razões,
por ser a primogénita. A possível má consciência dos implicados era, decerto,
atenuada pelo facto de Beatriz ter apenas 9 anos, o que excluía a consumação do
matrimónio a curto prazo. Admitamos que Afonso III teria esperança de se tornar
viúvo mais cedo ou mais tarde por Matilde ser bastante mais velha do que ele.
Assim veio a suceder, embora não tão depressa como decerto desejava.
A bigamia, no entanto, era demasiado
escandalosa para passar despercebida. A Crónica de 1419 regista, a este respeito, uma reacção
significativa:
E forom as gemtes muyto
maravilhadas daquele casamento, porquanto el-rey dom Afonso era casado com a
condesa de Bolonha, [...] em guisa que hum seu paniguado lhe disse hum dia que
fizera muito mal receber outra molher sabendo bem que era casado com a condessa
de Bolonha. E el-rey lhe deu em reposta dizendo que, se em outro dia achase
outra molher que lhe desem outra tanta terra no regno pera o acreçentar, que
loguo casaria com ela.
Trata-se de um texto tardio, que
não deve ser tomado à letra, mas que exprime bem a opinião corrente acerca da
falta de escrúpulos morais de Afonso III e ao mesmo tempo da maneira como valorizava
os interesses da coroa. O aumento de poder e de rendimentos merecia bem um
golpe nas mais sagradas regras canónicas. Traduzida em termos modernos, a
resposta do rei queria dizer que a sua bigamia se justificava por razões de
Estado. Não foi só nisso que Afonso III revelou um maquiavelismo avant la lettre. Aqui, se a sua
resposta é autêntica, exprimia rudemente o que Maquiavel havia de ensinar a
ocultar. Em muitas outras circunstâncias chegou aos seus fins de maneira indirecta
e com a mesma falta de escrúpulos.
O comportamento matrimonial do
rei deixa o leitor moderno verdadeiramente atónito também por outras razões.
Privado de consorte, teve as suas sucessivas ou simultâneas barregãs. Umas de
famílias pouco aristocráticas, outras da mais alta estirpe. Conhecemos os nomes
de algumas das que teve nesta época. De categoria inferior era Elvira Esteves,
que presenteou o rei com uma menina que o rei estimou bastante, Leonor Afonso,
nascida talvez por volta de 1250-1255 (deduzo a data aproximada do nascimento
da doação que lhe fez o pai em 28 de Janeiro de 1271, por ocasião do seu
casamento com Estêvão Anes de Sousa, admitindo que nesta data teria entre 15 e 20
anos). Mais inferior ainda, a moura de nome desconhecido filha de um alcaide
de Faro, de quem teve Martim Afonso Chichorro, raiz de nobre linhagem, nascido
pela mesma época. No extremo oposto, duas mulheres oriundas das família mais
nobres do reino:
Teresa Mendes Sousa e Urraca
Abril Lumiares. A primeira era nada menos do que a jovem sobrinha do mais
prestigiado nobre da corte, o conde Gonçalo Garcia Sousa, alferes-mor. A
segunda descendia de Egas Moniz de Riba Douro; era uma viúva experimentada, com
filhos, e com um segundo casamento não se sabe se antes ou depois dos (ou
durante os...) seus amores com o rei (examinando de perto as relações de
parentesco, o observador moderno não pode deixar de ficar um tanto perplexo ao
verificar que a vida sexual da corte parece caracterizar-se por uma efectiva
promiscuidade. Urraca Afonso, bastarda do rei, casou com Pêro Anes Gago, filho do
primeiro casamento da barregã régia Urraca Abril. Esta casou em segundas
núpcias com Fernão Garcia Sousa, outro tio da outra barregã régia Teresa Mendes
Sousa. Outra bastarda de Afonso III, Leonor Afonso, casou sucessivamente com
dois Sousas, primeiro com Estêvão Anes e depois com o tio deste, o alferes
Gonçalo Garcia. Aparentemente, as regras canónicas dos impedimentos
matrimoniais não preocupavam excessivamente os membros da corte. Note-se o
papel central que os Sousões, com o conde Gonçalo Garcia à frente, desempenham
nesta aparentemente sórdida troca de fêmeas. Estes factos podem servir para
compreender melhor a passividade com que o conde, de tão prestigiadas origens,
assistiu sem protestar à ascensão dos cavaleiros na corte de Afonso III). O rei
fez questão de presentear regiamente estas duas por documentos públicos e solenes
destinados a assegurar que os filhos que delas tivesse herdariam tais dons e os
poderiam transmitir aos seus descendentes. Sem qualquer pudor. Com efeito,
estas doações são actos solenes confirmados pelos membros da cúria régia e
pelos bispos do reino. Toda a corte se regozijava com a pujante virilidade do
rei.
Um destes documentos data de
Abril de 1256 e outro de Outubro do mesmo ano. Como é evidente, o rei não tinha
ainda consumado o seu segundo casamento. Na prática era ainda solteiro. Tinha
as suas razões». In José Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de
História Política, Revista Análise
Social, vol. XXXV, 2001.
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