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A
Sucessão (1259-1263)
«(…) De facto, a condessa Matilde
não tinha ficado muito feliz com o segundo casamento de seu marido. Da
documentação actualmente existente, e que consta, sobretudo, de um conjunto de
bulas pontifícias, podem deduzir-se os principais passos do processo canónico
desencadeado por ela e a que o nosso rei contrapôs, segundo parece, um prudente
e sepulcral silêncio. Sem nos prendermos com as veementes e escandalizadas
expressões da cúria papal, que acentuavam a gravidade moral do triplo pecado
régio (adultério, bigamia e incesto), vejamos quais as fases do processo
canónico. Em primeiro lugar, a condessa Matilde queixou-se ao papa, não sabemos
em que data. Sem ilusões quanto à eventualidade de poder reaver o marido, pedia
a separação e a restituição do seu dote (a separação implicava a cessação do
direito e dever de coabitar e a separação de bens. O direito canónico admitia a
separação, mas não autorizava um novo matrimónio a nenhum dos cônjuges). O
pontífice mandou ao arcebispo de Compostela, pela bula Exposuit nobis de 13 de
Maio de 1255, que citasse Afonso III, intimando-o a apresentar-se na cúria
papal dentro de quatro meses para se submeter a julgamento canónico. Na mesma
data, e por bula com o mesmo incipit,
o papa ordenava ao rei de França que não obrigasse a condessa a coabitar
com seu marido. Teria o piedoso S. Luís querido persuadir a condessa a vir para
Portugal para viver com o seu marido? Se assim era, o papa não considerou a
ideia muito prudente. Nenhum leitor ficará admirado se lhe dissermos que o rei
ignorou por completo a intimação. Já nessa época se conhecia o método de ganhar
processos por meio de recursos dilatórios. O silêncio era, portanto, a melhor
táctica. Segundo parece, houve ainda uma segunda citação com o mesmo resultado.
Mas a condessa continuou a lutar pela sua dignidade. Nomeou um procurador para
tratar do caso na cúria, um tal mestre Pedro, cónego de Nesle, que reclamou
novamente a separação dos cônjuges, a restituição do dote e a privação de
qualquer direito de Afonso sobre bens da condessa. O papa, dada a não
comparência do réu, decretou a separação nos termos reclamados e tornou-a
pública por meio da bula Presidente
rationis imperio no dia 26 de Julho de 1256. Ora Afonso não
restituiu o dote, permanecia em situação de bigamia e continuava a não
comparecer na cúria romana por si nem por meio de nenhum procurador. O papa
Alexandre IV, por mais benevolente que desejasse ser para com o rei, não podia
fazer de conta que ignorava o escândalo, sob pena de perder a sua autoridade
numa matéria como esta, em que era evidente (para os homens da época, é óbvio)
a obrigação de os príncipes respeitarem a autoridade pontifícia: era um caso
flagrante de superioridade da autoridade espiritual sobre a autoridade temporal
ratione peccati.
Por isso, na bula Sicut de virtute de 2 de
Abril de 1258, dirigida ao próprio rei de Portugal e com outro exemplar
endereçado ao arcebispo de Braga, Alexandre IV repete a sentença de separação
entre Afonso e Matilde e comunica que, se o rei não se separasse de Beatriz,
ordenaria ao arcebispo de Compostela e ao bispo de Mondonhedo que proclamassem
as devidas sanções canónicas. Não se conservam as bulas dirigidas a estes dois
prelados, mas sabe-se, por documentos posteriores, que de facto o reino foi declarado
sob interdito quarenta dias depois da respectiva sentença, ou seja, provavelmente,
nos últimos meses de 1258 (não se sabe a data exacta do começo do interdito
porque não se conhece quando é que os bispos nomeados pela Santa Sé proferiram
a sentença. O interdito consistia na proibição de celebrar ofícios
litúrgicos públicos nos lugares sobre os quais recaía até se dar a reparação exigida
pela autoridade eclesiástica. No caso presente, o interdito recaía sobre todo o
reino. Esta imposição afectava de maneira especial as comunidades religiosas, e
sobretudo as femininas, pelo que as mais escrupulosas recorriam, por vezes, ao
expediente de obterem uma licença papal para poderem ter missa celebrada pelo
capelão, mas à qual só podia assistir a comunidade. Foi o que aconteceu, como
veremos, com as clarissas de Santarém).
Note-se que esta data coincide
com a fase final do levantamento das inquirições. Não sabendo exactamente como
é que a ordem papal foi cumprida, resta-nos especular sobre o que poderia ter
acontecido. Por um lado, podemos admitir que as comunicações eram lentas e que
o cumprimento do interdito teria levado um certo tempo a efectuar-se, sobretudo
nos locais mais distantes das cidades. Também não sabemos se todo o clero o
cumpriu. Mas a estrutura eclesiástica era talvez, nessa época, a mais eficaz
máquina de transmissão de decisões públicas e de notícias. Além disso, pode,
neste caso, ter-se desencadeado o temor de desafiar os poderes sobrenaturais
por as ordens papais não serem cumpridas. Na década de 1190, os pregadores
tinham considerado as calamidades que durante duas décadas assolaram o reino,
espalhando a fome e a guerra por toda a parte, como castigo divino por a rainha
dona Teresa, filha de Sancho I, ter resistido durante anos à sentença de
separação de seu marido, o rei Afonso IX de Leão, por impedimento de
parentesco. Estes acontecimentos dramáticos estavam ainda na memória de muita
gente. Ora a situação de Afonso III era talvez mais grave ainda: o concubinato
e o casamento entre parentes eram amplamente tolerados, mas a bigamia
constituía grave escândalo. É, portanto, provável que o conhecimento do
interdito se espalhasse depressa e que a sua execução se generalizasse
amplamente». In José
Mattoso, O Triunfo da Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História
Política, Revista Análise Social, vol.
XXXV, 2001.
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