A
Sucessão (1259-1263)
«(…) Assim, se as inquirições
tinham, por um lado, inculcado na população de todo o Norte do país (a mais
densamente povoada) a imagem de um rei com grande autoridade e com grande
capacidade de intervenção, com meios de chegar a toda a parte e de se fazer
respeitar mesmo pelos mais poderosos, por outro lado, aparecia também, nesse
momento exacto, como a causa de nas igrejas não se poderem celebrar os ofícios
divinos, ou seja, aqueles rituais que, segundo a mentalidade popular,
asseguravam a prosperidade e a paz e mantinham o mundo em equilíbrio. O pecado
do rei já não era só dele, alastrava sobre todo o reino e ameaçava todas as
pessoas. De facto, o interdito foi cumprido. As clarissas de Santarém, por
exemplo, obtiveram do papa, por bula de 13 de Dezembro de 1259, autorização
para celebrarem o ofício divino e assistirem à missa celebrada pelo seu
capelão, apesar das proibições impostas pela sentença papal. Talvez fosse essa
uma das causas que levaram o rei, durante dois anos, a não tomar medidas
políticas especiais decorrentes do resultado das inquirições. As sanções
eclesiásticas colocavam--no numa situação de fragilidade. Era por isso que
pedia aos cónegos regrantes de S. Jorge de Coimbra que rezassem para não cair
no poder do diabo.
Afonso III, todavia, não podia
resignar-se facilmente a cumprir as imposições papais. Estava perto dos 50 anos
(não é segura a data do seu nascimento. A historiografia tradicional aponta o
ano de 1210, aceite por AC Sousa, 1735. Teria, portanto, 49 anos quando nasceu
dona Branca. Para os padrões medievais era quase um velho) e ainda não tinha
nenhum filho legítimo (a Crónica de
1419 diz o contrário. Num dos seus capítulos conta como a
condessa veio a Portugal quando soube que o marido tinha casado com dona
Beatriz. Enviando dois mensageiros ao rei para lhe estranhar o seu procedimento,
este mandou-lhes transmitirem-lhe graves ameaças no caso de ela não regressar a
sua terra. Resignada, teria deixado em Portugal um filho de Afonso III que ele
depois teria criado na corte antes de o casar com uma filha do infante Pedro de
Castela. Os eruditos do século XVIII, nomeadamente Caetano Sousa, 1735,
procuraram demonstrar que se tratava de uma tradição sem fundamento. Os seus
argumentos, nomeadamente o que se baseia na sucessão do condado de Bolonha e de
outros senhorios, por intermédio de sobrinhos e não de filhos de Matilde,
parecem-me concludentes). Um dos seus objectivos ao casar com Beatriz deve ter
sido justamente assegurar a sucessão do reino. Por isso, decerto, se apressou a
consumar o matrimónio logo que Beatriz chegou à idade núbil. Agora que tinha uma
filha legítima é que o papa persistia em a considerar fruto de barregania?
Legítima, na verdade, segundo os velhos conceitos matrimoniais da sociedade
feudal, contra os quais a Igreja lutava desde havia mais de um século. Entre
1196 e 1201 também o rei Filipe Augusto de França (pai do primeiro marido da
condessa Matilde) tinha vivido em situação de bigamia para poder ter um segundo
filho que melhor lhe assegurasse a sucessão. Nessa altura era ainda frequente o
recurso a pretextos de consanguinidade, mesmo longínqua, para dissolver
matrimónios, contornando, assim, o rigor da indissolubilidade, progressivamente
imposta pela Igreja. Eram meros pretextos: o modelo leigo, que fazia do
matrimónio uma questão linhagística, e não moral nem canónica, continuava ainda
bem vivo na mentalidade feudal. Para os conceitos da época, era fundamental
assegurar a sucessão, e esta definia-se cada vez mais por meio de valores
legais de legitimidade. Não era a mesma coisa que ter bastardos.
Para alívio de muita gente, o
dilema cessou, segundo parece, em 1261, com o falecimento da condessa Matilde
(aponta-se a data de 14 de Janeiro de 1261; Herculano prefere o ano de 1258; na
impossibilidade de consultar a bibliografia francesa, não podemos resolver a discordância.
Mas a data de 1261 insere-se mais facilmente na sequência dos acontecimentos datados
com segurança. Se a morte da condessa foi em 1258, não se compreende por que
razão demorou tanto tempo a conseguir a dispensa de consanguinidade. De resto,
o rei ainda em 1259 usava o título de conde de Bolonha). Restava resolver o
problema da consanguinidade. Afonso III, a quem, entretanto, nascera um filho
varão, Dinis, nascido a 9 de Outubro de 1261, que lhe havia de suceder no
trono, empregou nisso uma verdadeira bateria de influências. Começou por pedir
aos bispos que solicitassem ao papa a legitimação do casamento e dos filhos.
Não sabemos se eles acederam fácil ou dificilmente ao pedido. Sabemos apenas
que, tendo-se reunido quase todos em Braga, escreveram ao papa em Maio de 1262
pedindo-lhe que dispensasse o casal do impedimento de consanguinidade no 4.º
grau e que legitimasse os filhos já nascidos, alegando que o rei não podia
dissolver tal casamento; era preciso evitar o mal que daí decorreria e garantir
a utilidade e a paz do rei, da rainha e de todo o reino. Assinaram todos em seu
nome e no dos respectivos cabidos, excepto o do Algarve, mas incluindo o bispo
de Tuy, com jurisdição a norte do rio Lima. Não havendo bispo em Lisboa, visto
que se debatia a sucessão do seu prelado, morto em 1258, assinava apenas o
cabido (existe um documento de 29 de Abril de 1262 em que refere Mateus como
eleito pelo cabido, depois de grandes controvérsias, mas, provavelmente,
encontrava-se fora de Portugal. Talvez se tivesse dirigido à cúria pontifícia
para receber a sua confirmação, depois de um processo tempestuoso)». In José Mattoso, O Triunfo da
Monarquia Portuguesa, 1258-1264, Ensaio de História Política, Revista Análise Social, vol. XXXV, 2001.
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