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«(…) Claro que tem de tirar as coisas, mas deve colocar de novo
exactamente como se nada tivesse sido alterado. Como faz com o seu pai, agora
que ele não enxerga. Depois do acidente com o meu pai, aprendemos a colocar
cada objecto onde ele saberia que estava. Mas fazer isso para um cego era uma coisa. E outra bem diferente era
arrumar para um homem com olhos de pintor. Agnes não me disse nada depois da
visita. Quando me deitei na cama ao lado da dela naquela noite, permaneceu
calada, embora não me desse às costas. Ficou olhando o tecto. Depois que soprei
a vela, o quarto ficou tão escuro que não se enxergava nada. Virei-me para ela.
Sabe que não quero ir embora, mas tenho de ir. Silêncio. Precisamos do
dinheiro. Não temos nenhum, agora que o pai não pode trabalhar. Oito tostões
por dia não chega a ser muito dinheiro. Agnes tinha uma voz rouca, como se a sua
garganta estivesse cheia de teias de aranha. Vai manter a família com pão. E um
pouco de queijo. Não é tão pouco. Vou ficar sozinha. Está deixando-me
completamente só. Primeiro foi Frans, agora você. No ano anterior, fora Agnes
quem mais sofrera quando Frans saiu de casa. Os dois sempre brigaram como cão e
gato, mas, quando ele foi embora, ela ficou amuada vários dias, com dez anos,
era a mais nova de três filhos e sempre
estivera comigo e com Frans na casa.
A mãe e o pai continuarão aqui. Virei visitar-vos aos
domingos. Além do mais, Frans não saiu de repente. Há anos sabíamos que o nosso
irmão começaria como aprendiz aos treze anos. Nosso pai economizou muito para
pagar a taxa e falou sem parar que Frans aprenderia um outro lado da profissão,
voltaria para casa e os dois abririam uma fábrica de azulejos. Mas agora o nosso
pai ficava sentado ao lado da janela e nunca falava do futuro. Depois do
acidente com o pai, Frans passou dois dias em casa. E desde então não mais veio
nos visitar. A última vez que o vi foi quando fui à fábrica do outro lado da
cidade, onde ele é aprendiz. Parecia muito cansado e tinha queimaduras nos
braços, sofridas ao tirar os azulejos do forno. Contou-me que trabalhava do
amanhecer até tão tarde que às vezes chegava a perder a fome. O pai nunca
avisou que seria tão duro, reclamou, magoado. Só disse que o aprendizado havia
sido tudo para ele. Talvez tenha sido. Foi por isso que ele ficou assim,
observei.
Na manhã seguinte, quando estava pronta para partir, meu pai veio à porta,
arrastando os pés pelo corredor. Abracei a minha mãe e Agnes. O domingo chega logo,
tranquilizou minha mãe. Meu pai entregou-me um lenço com alguma coisa
embrulhada nele: isso é para se lembrar de casa, de nós, disse. Era o azulejo
dele de que eu mais gostava. A maioria dos que fizeram e revestiam a nossa casa
tinha algum defeito: estavam lascados, tortos ou manchados porque secaram em
forno quente demais. Mas meu pai guardou aquele especialmente para nós.
Mostrava apenas dois pequenos vultos, um menino e uma menina mais velha. Não
estavam brincando, como as crianças costumam estar, nos azulejos. Apenas andavam
e eram como Frans e eu, sempre que andávamos juntos: claro que o nosso pai
tinha pensado em nós quando pintou. O menino estava um pouco à frente da
menina, mas virado para trás, dizendo alguma coisa. Tinha o rosto travesso e os
cabelos despenteados. A menina usava touca como eu e não como a maioria, que
amarra as pontas sob o queixo ou atrás. Eu gostava de uma touca branca que tinha uma barra larga em volta
do rosto, cobrindo todo o meu cabelo e caindo em ponta, uma de cada lado, de
forma que não se podia ver o meu rosto de perfil. Eu deixava a minha touca
bem-engomada, fervendo-a com casca de batata. Fui-me afastando de casa,
carregando as minhas coisas amarradas num avental. Ainda era cedo, nossos
vizinhos jogavam baldes de água nos degraus e na rua em frente das suas casas,
esfregando-os. Agora, quem teria de fazer essa e muitas outras tarefas minhas
era Agnes, que ficaria com menos tempo para brincar na rua e à margem dos
canais. A vida dela também estava mudando.
As pessoas cumprimentavam-me e me olhavam, curiosas,
enquanto passava. Ninguém perguntava aonde estava indo nem fazia gentilezas.
Não precisavam, sabiam o que acontecia com as famílias quando um homem perdia o
ofício. Era coisa para se comentar depois: a jovem Griet virou criada, o pai
fez a família se rebaixar. Mas eles não gostavam de ver, pois poderiam
facilmente passar por aquilo também.
Toda a vida eu tinha percorrido aquela rua, só que nunca
tão ciente de estar dando as costas para a minha casa. Quando cheguei ao final
da rua e sumi de vista da minha família, ficou um pouco mais fácil andar firme
e olhar ao redor. A manhã ainda estava fria, o céu cinza-esbranquiçado caía
sobre Delft como um lençol, o sol de Verão ainda não estava alto o bastante
para apagar aquela cor. O canal em cuja margem eu passava era um espelho de luz
branca com toques verdes. Quando o sol ficasse mais forte, o canal escureceria,
ficando da cor do limo. Frans, Agnes e eu costumávamos sentar-nos à beira do
canal e jogar coisas na água (seixos, galhos; uma vez, um azulejo quebrado), imaginando que no fundo não encontrariam
peixes, mas criaturas da nossa fantasia, com muitos olhos, escamas, mãos e
barbatanas. Frans inventava os monstros mais interessantes. Agnes era a mais
assustada. Eu sempre acabava com a brincadeira, muito propensa a ver as coisas
como elas deviam ser e não inventar o que não existia». In Tracy
Chevalier, Moça com Brinco de Pérola, 1999, Bertrand
Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-957-8.
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