«(…) Contei-lhe, por isso, que no dia da morte da minha mãe,
estava ausente e zangada com ela. Contei-lhe que, um ano depois, no dia da morte da minha irmã,
estava igualmente longe, e soube que a mortalha fora preparada na cama que
partilhámos durante a infância, na grande casa familiar construída pelo pai, no
bairro clandestino das Searas. Contei-lhe que, meses mais tarde, a dois mil
quilómetros de casa, recebi a notícia da morte da avó materna, já o seu corpo
jazia entre vermes húmidos e madeira carcomida. Expliquei-lhe como as mulheres
mais importantes da minha vida desapareceram, num curto espaço de tempo, umas
atrás das outras, como se de uma maldição se tratasse. Da minha parte, nem um
adeus, nem uma única lágrima. Ainda não tinha dezoito anos. Ninguém está
preparado para tanta morte. Contei-lhe que vivi esses tempos, longe do meu
corpo, sendo outra pessoa que não eu, divorciada do dever moral de chorar os
mortos, de assistir ao funeral e de vestir o luto. Não experimentei tristeza,
nem desespero, nem angústia, nem medo, nada. Apenas uma espécie de baque
ensurdecedor, como quando a cabeça percute uma superfície dura e plana, um nó
no estômago que com o tempo se transformou em qualquer coisa que nem sei
definir. Uma a uma, todas se foram, e hoje já nem sei se um dia existiram, nem
se a imagem que trago delas corresponde a um pedaço de vida real. Contei a
Raquel que a minha irmã, Lara, tinha apenas vinte e dois anos quando morreu.
Que de repente apareceu doente.
Apareceu. Antes nunca tinha tido notícias de qualquer
fraqueza física. Que um dia entrou em casa com o ventre tão inchado que lhe
perguntei a sorrir, estás outra vez de barriga? Lara casara com o seu primeiro
e único namorado aos dezasseis anos. Desde logo alcançou, como dizia a avó,
sendo este o único termo que usava para designar gravidez. Uns meses depois, e
logo após o primeiro filho, teve um segundo. Duas filhas e um casamento
infeliz. O marido, próprio das selvas, como dizia a avó, batia-lhe. Lara sempre
o defendeu. A avó ainda tentara convencê-la a partir, a emigrar para França com
as filhas, ele não saberia encontrá-la. Lara explicava pacientemente à avó que
não podia fazer isso, que ele precisava de ajuda, que precisava dela e das
filhas para se curar do mal que tinha. O que Lara não dizia, é que vira no
casamento um meio para se libertar das garras do nosso pai, um homem rude e
autoritário, e tão violento quanto o marido que arranjara.
Irónica escolha, a dela. O destino trocou-lhe as voltas e
riu-se à farta na sua cara. Ao terceiro ano de casamento, recebeu a notícia de
um tumor no fígado como uma carta de chamada ao paraíso. Não sabia ainda que
tinha poucos meses de vida, percebeu, pelo menos, que seria afastada de casa
para uma longa hospitalização. Uma bênção. Pensou a avó. Durante o período de
internamento, calhou-me a tarefa de lhe cuidar das duas filhas. Um mês chegou,
para sentir na pele o inferno que era o dela. Logo desde a primeira semana, o
conjunto dos sentidos tocava a rebate. Perigo, perigo, gritavam-me de dentro sobressaltadas
vozes, convocando as forças. Fugi, larguei a casa. O marido da minha irmã era
um louco ignorado, o mal que não se via. Socialmente era um tipo afável,
apreciado pela sua generosidade. Essa era a porção visível, patente aos outros.
O resto, a parte oculta, não poderia ser interceptado a olho nu. Astucioso,
maquiavélico, teria acabado por me beber a lucidez como fizera com Lara. Surgia-me,
às vezes, à entrada da porta da cozinha, com um olhar gélido de bicho, como um
animal de sangue frio, predador, determinado a fazer uma vítima. Enquanto me
ocupava das crianças, costumava lançar obscenidades em palavras embrulhadas, dissimuladas
e ambíguas. O marido de Lara entregava-se a esse jogo de prazer lento e
prolongado, procurava, assim, atrair a minha atenção e desmanchar-me a rigidez.
Era um homem de silêncios penetrantes e calculados ou, outras vezes, uma
espécie de coisa em estado incerto, transbordante de cortesia e delicadeza.
Injuriada, abandonei-lhe a casa, no dia em que avançou sobre mim com um ardor
suíno, violando todas as convenções. Imobilizada contra a parede da cozinha,
temi o pior». In Ana Miranda, O Diabo é um Homem Bom, Editora Chiado, colecção
Viagens na Ficção, 2012, ISBN 978-989-697-552-4.
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