«(…) Quero ver cabra, deixa ver como as tens, minha cabra,
xingava no corpo a corpo, escavando túneis de tecido com as mãos. Entre os móveis
pardos da cozinha resistiria. Resistiria até ser ganha pela fraqueza, falta de
solidez face à compleição do bicho. Arfava e largava sobre mim um hálito podre,
embebido em cerveja e cigarros. Fui salva pelo carteiro que, nesse preciso
instante, bateu à porta para lhe entregar um telegrama. Era a notícia da morte
da minha irmã. Contei a Raquel que passei a ver em todos os homens a mesma
malvadez. Pensamos, na família, que Lara morreu devido a lesões causadas pela
violência do marido. Nunca se confirmou. Oficialmente tinha um tumor maligno. Não
compreendia como depois de conhecer o pai que tinha, Lara não soubera escolher
um homem melhor. Não percebes nada, Laura, não escolhemos a pessoa por quem nos
apaixonamos, defendia ela. Respondia-lhe em revolta que comigo seria diferente,
que jamais homem algum me poria as patas em cima. Disse a Raquel que o mal
pertence ao género masculino e, ao lançar um olhar pela história do mundo,
chego à conclusão de que os personagens mais terríveis são um fiel decalque uns
dos outros. Déspotas, usurpadores, sicários, pérfidos, destruidores,
sanguinários. Abundam os exemplos, através dos tempos, em todos os povos, em
todas as terras, em todas as vilas, em todas as casas. O mal é um elemento do
cromossoma constituído por um segmento de ADN que se transmite de pais para
filhos, um gene que se multiplica, que se reproduz em silêncio e no silêncio
dos cantos escuros.
Insistia com Raquel que contrariar a sua existência,
eliminá-lo, será exterminar uma parte de nós mesmos, como amputar um braço ou
uma perna. E, nisso, Jean tinha razão. Lembro-me do ano 1999. Fim de milénio.
Poderia ter sido um ano de redenção. O Diabo é um Homem, e um Homem pode mudar.
Houve tempos bárbaros, cruéis. Todos os povos da terra, em todos os tempos,
tiveram os seus líderes malvados. No meu tempo, o mal somos todos e cada um de
nós, porque temos consciência dele. Podemos aceitá-lo, compactuar com ele ou
recusá-lo de forma objectiva e consciente. Se acreditasse nas histórias
contadas pela minha avó, a primeira coisa que Jesus deveria ter feito quando
chegou à Terra era ter salvado o Diabo de si mesmo, resgatá-lo do mal como
qualquer outra criatura em perdição. São os seres maléficos, mais do que
quaisquer outros, que precisam da salvação. Ora, não sei porque estratégia
divina ou maligna, Jesus parece ter perdido essa batalha e acabou morto
crucificado e o Diabo à solta no mundo. Contei a Raquel que, anos mais tarde,
encontrei o diário de Lara e soube, ao contrário do que eu pensava, e do que a
avó e a mãe diziam, que ela não vivia as penas do inferno com o marido, mas um
amor cego, pleno de compaixão. No dia vinte e seis de Agosto de 1988 ela
escreveu:
Ele sofre tanto, meu Deus! Fora esses momentos em que com o
meu amor posso confortá-lo e aliviá-lo daquilo que o atormenta, nada posso,
senão oferecer o meu corpo como receptáculo dos seus demónios. Depois de
descarregar em mim essa violência, vejo que fica mais calmo e isso conforta-me.
O meu corpo dorido, conta menos que o seu olhar apaziguado pousando sobre mim,
como a pedir perdão. Ele carrega todo o mal que lhe fizeram e procura
desesperadamente uma remissão. Dou-lhe o meu corpo em troca das nossas duas
almas, porque sei que salvando-o salvar-me-ei. O mal não pode ganhar. Amo-te F.
Disse a Raquel que Lara perdera nitidamente a batalha. Ela
foi-se e ele continua vivo e a torturar outras tais que a minha irmã, iludidas
de que o amor cura e salva. A minha avó lia-nos, quando crianças, a História
dos Santos Mártires cujos corpos, dizia ela, a terra não há-de comer. Ela
repetia que para combater o mal há que compreender o sofrimento. É o que se lê
nas Sagradas Escrituras, debatia para nos convencer. Durante esses serões, à
volta de um livro grosso como a bíblia, a imensidão do mundo sentava-se
connosco ao borralho. A avó Xoxota não se coibia de bizarrias. Tinha uma velha
colecção em vinil de cantos da Idade Média, Josquin des Pres, John Dowland, G.
Pierluigi da Palestrina, e à força de tanto os ouvir passei a detestá-los, mas
nessa altura ainda me encantavam. Pus-me, em segredo, a analisar essa ideia
vaga de sofrimento de que a avó
falava, com a pretensão inocente de destruir o mal. Na enormidade dessa
insipiência, quis acreditar que Deus precisava de ajuda. Ia seguir o exemplo
dos Santos Mártires, como Santa Bárbara, uma jovem assassinada pelo pai que,
pagão, quis obrigá-la a renunciar à fé. Diz a lenda que o homem morreu
fulminado por um raio. Os Santos Mártires venceram o medo da dor física pela
determinação e coragem da sua fé, dizia a avó. A partir deste pressuposto
lancei-me, na experiência solitária de um longo ensaio sobre o sofrimento. Aos
seis anos, mutilava partes do corpo, testava a dor física como meio de
fortificação da alma». In Ana Miranda, O Diabo é um Homem Bom,
Editora Chiado, colecção Viagens na Ficção, 2012, ISBN 978-989-697-552-4.
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