«(…) O resultado é um afastamento do mundo. Cada movimento está
construindo sociedades inteiramente fechadas sobre si mesmas e
auto-suficientes, chegando ao ponto de organizar negócios e aldeias inteiras em
que podem criar ambientes não contaminados, exemplos para o mundo de como a
Cristandade, numa forma absolutamente livre de entraves, é a única solução para
todos os seus males (do mundo). Desta maneira, eles conseguiram reavivar uma
forma de triunfalismo de alcance muito maior do que aquele com o qual a Igreja
pré-conciliar jamais teria sonhado um dia: nas suas utopias particulares, eles
já resolveram os problemas do mundo. Este conceito de uma solução religiosa
para todos os tipos de problemas, conhecido na Europa continental pelo nome de fundamentalismo,
é muito atacado pelos adversários dos movimentos, tanto no seio da Igreja
quanto fora dela. Naturalmente, este dualismo radical igreja-mundo é tão velho
quanto a própria cristandade, e muitas seitas que o adotam acabaram montando
"comunidades intencionais" como essas que os movimentos estão criando
agora. Graças a uma doutrinação rigorosa, os membros chegam a ver cada aspecto
de suas próprias vidas, e o mundo, através dos olhos do movimento. Isto
significa que, mesmo entre católicos, há maneiras de interpretar o mundo, por
meio de "línguas" e culturas específicas, que são totalmente
incompatíveis entre si.
Mas
uma de suas características mais incômodas é a desvalorização da razão. Do
ponto de vista doutrinário, mesmo durante o período pré-conciliar a Igreja sempre
ensinou que razão e fé eram compatíveis. A fé não pode contradizer a razão. Os
movimentos acabaram, no extremo oposto, rebaixando o papel da razão. Eles são
anti-intelectuais e desenvolvem uma militância anti-intelectual, até mesmo a
CL, que exerce sua actividade de recrutamento principalmente entre estudantes.
Os membros têm de se entregar inteiramente às estruturas e práticas do
movimento. A ênfase é na supremacia da experiência
sobre a razão. Encorajam-se os iniciados a aceitar e a praticar o que o movimento
ensina. A compreensão virá depois, é o que lhes dizem. Como cada um dos adeptos
considera ter recebido um papel messiânico, segue-se que a maior parte dos
consideráveis recursos e energias dos movimentos é canalizada para actividades
de militância missionária. Se essas ambições de proselitismo se limitassem ao
campo eclesiástico, os novos movimentos teriam um valor um pouco maior que o de
uma simples curiosidade para aqueles que se encontram fora da Igreja Católica.
Mas este limite não existe. O alvo deles não são principalmente os católicos,
nem mesmo os católicos caídos, mas aqueles que estão longe da Igreja (oslontani), os não-crentes, e até mesmo, até certo
ponto, aqueles que se opõem à religião, e tem sido sempre entre estes últimos
que os movimentos têm conquistado os seus maiores sucessos. Eles acreditam ter
nas mãos o futuro não apenas da Igreja, mas o futuro do mundo inteiro. Por isso
as suas ambições estendem-se também aos domínios do poder temporal. Com o zelo
fanático que desenvolvem, e com seus imensos recursos de dinheiro e pessoal,
têm conseguido brilhantes sucessos na política, nos negócios e na comunicação
social, sucessos que são vistos como passos no caminho da criação de uma nova
ordem mundial. Um de seus principais objectivos é impor à maioria os seus
pontos de vista, que são os da moral da direita mais extremada. E, neste
intuito, eles estão dispostos a pôr em acção, como alavanca política, até mesmo
a superioridade numérica de que dispõem. Já tomaram parte activa em campanhas
contra o aborto e contra as leis do divórcio em países teoricamente católicos
como a Itália e a Irlanda.
Por
todas suas singularidades, os movimentos tinham muito a oferecer ao papa João
Paulo II quando ele ascendeu ao trono papal em 1978. O turbilhão de mudanças
nos anos que se seguiram ao Concilio havia sacudido os alicerces da Igreja.
Milhares de sacerdotes abandonaram o ministério; grande número de religiosos de
ambos os sexos deixaram as suas ordens; animados pelos novos horizontes
revelados pelo Concílio, os teólogos que haviam sido os seus arquitectos
desejavam ardentemente afastar para mais longe ainda as barreiras doutrinais; a
nova autonomia do laicato e a ênfase no papel da consciência sobrepondo-se à
inquestionável submissão à autoridade
da Igreja levavam os casais a rejeitar a condenação do controle artificial de
natalidade, condenação reafirmada em 1968 pela encíclica Humanae vitae; em resposta
ao apelo do Concilio por justiça e paz, padres e freiras, especialmente nas
Américas, passaram a envolver-se directamente com a política, enquanto outros
firmavam um pacto com o marxismo, o mais ferrenho inimigo do catolicismo por
mais de um século». In Gordon Urquhart, A Armada do Papa, tradução de
Irineu Guimarães, Editora Record, 2002, ISBN 978-850-106-222-2.
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