«(…) Com estas origens inteiramente diferentes, um jargão
próprio e com as suas exclusividades, à primeira vista estes movimentos parecem
ter muito pouca coisa em comum. Uma análise mais cuidadosa revela, entretanto,
que eles compartilham muito mais coisas do que seu conservadorismo comum. Uma
das características destes movimentos, por exemplo, como era característica
também do grande precursor de todos eles, a organização secreta espanhola Opus
Dei, era rejeitar todas as definições ou descrições deles mesmos formuladas por
estranhos, mesmo que sejam autoridades da Igreja. Eles preferem dizer o que não
são a dizer o que são. A recusa de serem enquadrados em definições estreitas é
uma expressão do sentimento que eles cultivam de serem chamados para uma missão
única.
Assim,
não são nem associações nem ordens religiosas. Apesar do facto de serem todos
eles altamente clericalizados, se apegam com uma obstinação extraordinária a
seu estado de leigos. Como muitas seitas protestantes clássicas, cada um deles
alega estar retornando à fé autêntica dos primeiros cristãos. Uma vez o
Focolare qualificou-se a si mesmo com a duvidosa expressão os primeiros
cristãos do século XX. Estes movimentos também costumam se apresentar como a
autêntica expressão do Vaticano. O papa João Paulo endossou vigorosamente este
ponto de vista: o grande florescimento destes movimentos e as manifestações de
energia e de vitalidade eclesiástica que os caracterizam certamente podem ser
considerados como um dos mais belos frutos da vasta e profunda renovação
espiritual promovida pelo último concilio. Ele deve saber: como jovem bispo e
como teólogo encontrou-se de repente envolvido nesta fantástica virada da vida
da Igreja Católica. Esta grande reunião de todos os bispos católicos do mundo,
convocados pelo santo papa João XXIII, rejeitou o conceito jurídica e
hierarquicamente estático de Igreja Católica pós-tridentina e o substituiu pelo
conceito mais dinâmico de Povo de
Deus, aumentando assim a importância do laicato. Mas o maior feito do Concílio
foi a quebra do dualismo que havia caracterizado o catolicismo.
O papa
João havia feito uma alusão a isto quando declarou que a sua intenção ao
convocar o Concilio era abrir as janelas da Igreja. A mentalidade clerical que
prevalecia até então opunha a Igreja ao mundo, o sagrado ao secular, a alma ao
corpo. A Igreja Católica era uma fortaleza da verdade, que tinha todas as
respostas, respostas que ela dispensava com autoridade divina. Ela não tinha
nada a aprender do mundo. A Igreja pré-conciliar caracterizava-se por um
triunfalismo que se exprimia pela pompa monárquica e pela magnificência da
corte papal. O mundo e as actividades humanas eram considerados, se não exactamente
como um mal, pelo menos como moralmente neutros, a não ser que a Igreja ou seus
representantes concedessem a eles um conteúdo especificamente religioso. Daí,
antes do Concilio, as cerimónias especificamente religiosas de consagrações, ou
de bênçãos, que exprimiam a necessidade de levar a esfera secular para dentro
da esfera do sagrado. Em sentido contrário, os padres do Concilio proclamaram
que o Mundo e a actividade humana eram
bons em si mesmos; não precisavam ser consagrados. Católicos podiam, por
conseguinte, viver em harmonia com outros. Entre as verdadeiras convulsões do
período pós-conciliar, esta mudança de mentalidade foi provavelmente uma das
maiores.
É
interessante que, como a Opus Dei, os movimentos que antecederam a este evento,
Focolare e Comunhão e Libertação, nunca julgaram conveniente reexaminar as suas
atitudes e se reajustar à luz do Concilio, a despeito do facto de inúmeros
outros corpos da Igreja, inteiramente integrados à mentalidade vigente, terem
sentido a necessidade desta readaptação. Longe de atribuir valor ao mundo,
estes movimentos rejeitam a esfera humana como totalmente sem valor, condenando
a sociedade nos termos mais virulentos. Os membros são encorajados a integrar todos
os aspectos das suas vidas dentro das restrições do movimento, uma vez que
todas as influências externas são vistas como fonte de contaminação. Não é
possível haver qualquer diálogo com os de fora a respeito de matéria importante
de fé, uma vez que os movimentos acreditam que estão de posse da totalidade da
verdade e que, por conseguinte, estão em posição de ensinar, nunca de aprender.
Eles têm todas as respostas não apenas no domínio espiritual, mas também na
esfera secular. Somente uma presença explicitamente religiosa, a própria
presença deles, pode dar valor às actividades seculares. Mas como a ênfase é
posta no grupo, e não no indivíduo, esta consagração das actividades humanas
tem de se realizar dentro do âmbito do movimento». In Gordon Urquhart, A
Armada do Papa, tradução de Irineu Guimarães, Editora Record, 2002, ISBN
978-850-106-222-2.
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