Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Ia
começar a fazer a comparação entre mim e as minhas irmãs, quando ele me deteve
e disse: vamos, vamos. A falta de humanidade não é o pecado dos seus pais.
Trate de viver com paciência a sua sorte e converta-a num mérito aos olhos de
Deus. Verei a sua mãe e pode estar certa de que empregarei em seu favor todo o
ascendente que possa ter sobre a alma dela. Aquele muita com que me
respondeu foi um rasgo de luz para mim; já não tinha dúvidas de que era verdade
aquilo que tinha pensado sobre o meu nascimento. No sábado seguinte, por volta
das cinco e meia, ao cair da tarde, a criada que me tinham destinado subiu ao meu
quarto e disse-me: senhora, a vossa mãe ordena-lhe que se vista. E uma hora
depois: a senhora deseja que desça comigo. Encontrei à porta uma carruagem em
que entrámos, a criada e eu; e soube que íamos aos Feuillants, a casa do padre
Serafim. Estava à nossa espera, só. A criada afastou-se e eu entrei no
locutório. Sentei-me, inquieta e curiosa sobre o que teria a dizer-me. Foi
assim que me falou: Menina, vou explicar-lhe o enigma da severa conduta dos
seus pais; a senhora sua mãe autorizou-me a fazê-lo. Seja sensata; tenha ânimo
e coragem; está numa idade em que se lhe pode confiar um segredo, ainda que não
lhe diga respeito. Há já muito tempo que venho aconselhando a sua mãe a
contar-lhe o que vai saber agora; ela nunca foi capaz de se decidir: para uma
mãe, é muito difícil confessar à própria filha uma falta grave. Conhece o seu
carácter: não suporta a humilhação de ter de reconhecer certas coisas.
Acreditou que a podia levar a fazer-lhe a vontade sem ter de se humilhar, mas enganou-se.
Está muito desgostosa com tudo isto. Hoje, veio pedir-me conselho e
encarregou-me de lhe dizer que não é filha do senhor Simonin. Respondi-lhe
imediatamente: já suspeitava. E agora, menina, considere, e julgue se a sua mãe
pode, sem o consentimento do seu pai, ou mesmo com ele, igualá-la a outros
filhos que não são seus irmãos e se pode confessar ao seu pai um feito sobre o
qual ele próprio tem enormes suspeitas. Mas, senhor, quem é o meu pai? Menina,
esse segredo não me foi confiado. Do que não há dúvida, menina, é que
favoreceram enormemente as suas irmãs e tomaram todas as precauções que se
possam imaginar, nos contratos matrimoniais, na desnaturalização dos bens, nas
estipulações, nos fideicomissos e outros meios, para reduzir a nada a sua
legítima, no caso de um dia a poder reclamar judicialmente. No dia em que
perder os seus pais encontrará muito pouca coisa. Recusa o convento, mas talvez
venha a lamentar não estar lá.
É
impossível, senhor. Eu não peço nada! Não sabe o que é o esforço, o trabalho, a
indigência. Conheço, ao menos, o preço da liberdade e o peso de uma vida para a
qual não fui chamada. Disse-lhe o que tinha a dizer. Agora, cabe-lhe a si
reflectir, menina. De seguida, levantou-se. Só mais uma pergunta, senhor. As
que quiser. As minhas irmãs sabem o que acaba de me contar? Não, menina. Então,
como puderam deixar uma irmã assim, sem nada? Porque, foi isso que me fizeram. Ah,
menina! O interesse! O interesse! De outra maneira, nunca teriam encontrado os
bons partidos com que casaram. Neste mundo, cada um pensa em si mesmo, e eu não
a aconselho a contar com nenhuma delas quando perder os seus pais. Pode estar
segura de que vão disputar até ao último cêntimo a pequena quantia que haverá
para repartir entre as três. Têm muitos filhos, e esse honrado pretexto bastará
para a reduzir, a si, à mendicidade. Além de mais, elas não podem fazer nada;
são os maridos que vão tratar de tudo. Se tiverem algum sentimento de
comiseração, a ajuda que lhe derem, nas costas dos maridos, irá tornar-se numa
fonte de desunião doméstica. Estou sempre a ver coisas como esta, ou filhos
abandonados ou filhos, mesmo legítimos, socorridos à custa da paz doméstica. E
por outro lado, menina, é muito duro o pão que se recebe. Se acredita em mim,
reconcilie-se com os seus pais; faça o que a sua mãe espera de si; entrará para
freira e ser-lhe-á dada uma pequena pensão com a qual os seus dias, se não
forem felizes, serão, ao menos, suportáveis». In Denis Diderot, A Religiosa,
1796, tradução de J. Guinsburg, Editora Perspectiva, 2009, ISBN: 978-852-730-878-6.
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