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São
Francisco
«(…) Então e o
estágio na law firm do pai da Jen? Peço apenas dois minutos do vosso
tempo para fazer um flashback ao meu passado. Podem colocar o cronómetro
a contar agora. Começar: cresci numa família típica americana, com pais
divorciados do Lower East Side de Manhattan. A minha mãe sofre de depressão e o
meu pai é escritor, prestes a escrever o grande best-seller. Há 30 anos. A Jen
é a minha melhor amiga. Tal como foram o meu pai e o dela, há muito tempo.
Estava mais tempo em casa da Jen do que na minha. As férias eram quase sempre
passadas com eles nos Hamptons, na casa de praia. Sempre que podia, fugia da
realidade que tinha em casa e passava todo o meu tempo com a Jen. Às vezes,
imaginava que os pais dela me tinham adoptado. Era a eles que eu queria impressionar.
Falta um minuto. Sempre quis realizar documentários. Viver em Manhattan era
caro e não queria acabar como os meus pais. Eu sabia que devia tirar o curso de
Direito, como a Jen. Ambas queríamos impressionar o pai dela. Ao mesmo tempo,
eu queria afastar-me o mais possível de Manhattan. São Francisco, na outra
costa dos Estados Unidos, era suficientemente longe. No final do curso, o pai
dela esperava que fossemos trabalhar para a law firm dele. Eu estava
muito agradecida por poder trabalhar na Gladstone & Associates. Era isso
que eu tinha imaginado fazer com o meu futuro? Não. Eu queria fazer filmes. Ser
uma artista. Mas não queria ficar pobre como os meus pais. Como eu me tinha
habituado à vida confortável de casa da Jen, decidi tirar Direito.
Sempre achei que o
destino era uma desculpa que os preguiçosos usavam. Mas desde a véspera que eu
sentia que o destino estava a dar-me um pré-aviso: perder o concurso de
SingStar; ser a musa do Brian; o homem mistério das fotografias; terem-nos
levado para o Burning Man sem termos percebido o que se estava a passar. Sim,
eu sei que o álcool também pode ter tido algum efeito, mas eu queria acreditar
que isto eram sinais de que algo poderia acontecer muito brevemente. E
aconteceu.
Desculpem. Esta
história demorou mais dois minutos do que o previsto. Agora sim: de regresso ao
Burning Man. Estacionámos a carrinha, saímos e ficámos a olhar à volta,
hipnotizados. Os pensamentos tinham muita dificuldade em articular frases com
alguma coerência. Na minha cabeça, soprei no balão, 0.0. Estava completamente sóbria.
Estamos dentro do Mad Max sob efeito de esteróides, disse para a Jen, enquanto
olhava à minha volta e vi, a andarem de um lado para o outro, gigantescos dragões
e dinossauros metálicos. As pessoas estavam mascaradas com armaduras, fatos
coloridos e algumas bastante mais nuas do que seria esteticamente desejável. Só
falta o Mel Gibson, novo, quando ainda era giro e não era xenófobo e um wife
beater, acrescentou a Jen. Umas centenas de metros à minha frente, um
gigantesco carro descapotável com a forma de um gato. Naquele momento, eu e o
Brian transformámo-nos numa FAQ de um website dos anos 1990.
O que é o Burning
Man? Uma experiência anual onde pessoas se juntam para exprimirem o que sentem,
criando uma comunidade temporária. Desculpe. Pode repetir? Cerca de 70 mil
pessoas reúnem-se no meio do deserto Black Rock, no Nevada, num espaço
gigantesco e criam uma comunidade. E quando digo gigantesco é mesmo gigantesco.
Estão a ver um campo de futebol? Não tem nada a ver, é muito maior. Vista do
espaço, a forma como toda a área está organizada, parece um desenho feito por
extraterrestres. Todos os anos há um tema, como, por exemplo, Fertility, Time,
Hell, Outer Space, The Body, The Floating World, Evolution e Metropolis.
Ah é uma coisa tipo hippie, onde fumam charros, tomam pastilhas
de ecstasy e passam o tempo bêbedos e drogados? Não. No Burning Man não se
incita ao consumo de substâncias nem se condena». In Francisco
Salgueiro, Estou Nua e Agora?, Editora Oficina do Livro, 2014, ISBN 978-989-741-159-5.
Cortesia
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