São
Francisco
«(…) O que é que as
pessoas fazem o dia inteiro? Podem criar instalações de arte, visitar os theme
camps & villages… Theme camps. O que é isso? Ia explicar de seguida se não
me tivesse interrompido. Os theme camps são pequenas aldeias dedicadas a um
tema. Continuando a resposta anterior, as pessoas podem andar de bicicleta,
descobrirem-se a si próprias, ajudarem a comunidade, participarem em festas temáticas,
verem os veículos mutantes. Veículos mutantes. O que é isso? Os mutant vehicles
são carros completamente transformados que têm formas abstractas ou a forma de
mobília, animais, monstros, pontes, barcos, etc. Podendo ser pequenos ou
enormes. Sim, eu sei que algumas destas perguntas foram parvas, mas eu nunca tinha
ouvido falar no Burning Man. Se algum dia este livro sair em versão Blu-ray, talvez
inclua extras e apareçam as outras perguntas ainda mais parvas do que estas,
mas que tive vergonha de escrever aqui. Vejam só esta: onde ficam as casas de
banho? Oh my god, disse a Jen, logo na primeira noite, quando percebeu que não existiam
casas de banho. Ouvi dizer que no final fazem uma fogueira enorme? Isso é
verdade? Em todas as edições do Burning Man, há uma estátua enorme de um homem
que simboliza todos nós. No final da semana, ela é queimada. Quanto tempo dura
o Burning Man? Começa numa segunda-feira e vai até ao domingo seguinte. Como?!
Pode repetir? Começa numa segunda-feira?! Sim. Começa hoje. Mas hoje não é
domingo? Não, hoje já é segunda-feira. Vocês fizeram directa desde sábado até
meio da tarde de domingo e dormiram até segunda de manhã. Fui assombrada pelo pânico.
Já era segunda-feira. Eu devia estar em Nova Iorque. Tinha mandado um sms ao
pai da Jen a achar que era domingo. Tinha de me ir embora já! Mas como? Só via
carros a chegarem e nenhum a ir-se embora. Disse imediatamente à Jen o que
estava a acontecer. Oh my god! Estamos tão lixadas! e durante os minutos seguintes
só conseguiu falar em maiúsculas, ao berros com o Brian, por nos ter trazido
sem nos avisar. Estava imenso calor. Encontrávamo-nos junto das caldeiras do
aquecimento global. Mas o calor não estava sozinho e vinha acompanhado por dois
amigos: o vento e o pó. Em poucos minutos, o meu cabelo passara de castanho a
cinzento e eu parecia uma velhota. Apesar do calor poder derreter um bloco de
cimento, eu não tinha tempo a perder. Precisava de encontrar uma forma de me ir
embora. Emprestaram-me uma bicicleta e fui explorar as ruas da Playa, daquela
comunidade temporária, perguntando permanentemente se alguém se ia embora e me
poderia dar boleia. Olá.
Esta era a única
resposta que eu obtinha. As pessoas pareciam hipnotizadas e só sabiam sorrir e
responder isto. Eram simpáticas, mas eu precisava de me ir embora. A sua
alegria era demasiado sonora e não me podia desviar do meu objectivo. As horas
foram passando e, à minha volta, as pessoas abraçavam-se, pintavam, dançavam,
faziam instalações de arte, e outras apenas relaxavam. Não sei bem como, porque
havia diferentes músicas a serem lançadas de todos os lados, numa luta pelo domínio
dos nossos ouvidos. Aos poucos, a pressão para encontrar alguém que me levasse,
a mim e à Jen, para fora dali, foi sendo esmagada por tudo aquilo que eu estava
a ver, e já só andava de bicicleta pelo prazer e pela descoberta daquilo que me
rodeava. Subitamente, vi uma fila enorme de pessoas junto a uma senhora. Um exército
de pontos de interrogação invadiu a minha cabeça. O que é aquilo? Teria vindo
alguém do futuro? E se tivesse vindo, como seria o futuro? Sou curiosa. Saí da
bicicleta e fui até lá. Pelo caminho, tossi umas sete vezes porque estava tanto
pó no ar que os pulmões começaram a reclamar comigo. Quando me aproximei, vi
uma senhora que estava a fazer uns colares fabulosos a partir de caricas.
As pessoas podem vender coisas no Burning Man? Não. O objectivo é
partilharmos. Na altura, ainda não tinha chegado a esta parte da FAQ, por isso
não percebi porque é que ela estava a dar aqueles colares. Isto é fabuloso,
certo?, perguntou-me, em modo de afirmação, um homem que estava na fila atrás
de mim. Jared, de Tucson. Começou a falar comigo como se fossemos amigos desde
há quatro séculos e tivéssemos sido colegas de escola noutra encarnação». In Francisco
Salgueiro, Estou Nua e Agora?, Editora Oficina do Livro, 2014, ISBN 978-989-741-159-5.
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