«(…) Já vai ver, disse, com
um encolher de ombros nervoso. Então posso avançar? Perguntou Falcón,
observando os procedimentos regulamentares com um juiz com quem nunca antes
trabalhara. Calderón anuiu e disse que a Polícia Científica tinha acabado de
entrar no edifício e que ele podia fazer as suas observações iniciais da cena
do crime. Falcón atravessou o corredor que ligava a entrada ao escritório de
Raúl Jiménez, pensando em preparar-se, mas sem saber como. Parou à porta da
sala de estar e franziu o sobrolho. Estava vazia. Voltou-se para Calderón, que
estava nesse momento de costas para ele, ditando qualquer coisa à secretária del
juez, enquanto o médico forense escutava. Falcón espreitou para dentro da
sala de jantar, igualmente vazia. Estavam de mudança? Perguntou. Claro, inspetor-chefe,
disse Calderón. A única mobília ainda no apartamento é uma cama no quarto das
crianças e o escritório completo do sr. Jiménez. Isso quer dizer que a sra.
Jiménez já se encontra na casa nova com as crianças? Não temos a certeza. O meu
adjunto, o inspetor Ramírez, deve estar a chegar. Mandem-no imediatamente vir
ter comigo.
Falcón avançou até ao fundo do corredor, subitamente consciente de cada
passo seu no soalho encerado do apartamento vazio. Os olhos se fixaram num
gancho na parede nua em frente, por baixo do qual se distinguia um quadrado
mais claro do que a envolvência, marca de ter estado ali pendurado um espelho
ou um quadro. Enfiou um par de luvas cirúrgicas, puxou-as bem à volta dos
punhos e esticou os dedos. Virou-se para entrar no escritório, levantou os
olhos das palmas de látex opaco e deu com o rosto assustador de Raúl Jiménez,
de olhos fitos nele. E foi então que tudo começou.
Não se trata de olhar para trás, para esse momento, e perceber que tinha
sido um ponto de viragem. A mudança não foi subtil. Uma alteração na química
corporal notou imediatamente. As mãos começaram a suar dentro das luvas, bem
como o alto da testa, imediatamente abaixo da linha de implantação do cabelo. O
palpitar tenso do coração fê-lo parar e começou a sentir dificuldade em extrair
oxigénio do ar. Respirou fundo por alguns segundos e apertou a garganta com os
dedos procurando facilitar a entrada de ar. O corpo dizia-lhe que havia ali
qualquer coisa a temer, enquanto a mente lhe transmitia indicações contrárias. O
cérebro estava fazendo as habituais observações desapaixonadas. Os pés de Raúl
Jiménez estavam descalços e os tornozelos presos às pernas da cadeira. Alguns
móveis estavam fora do lugar, destoando do resto da sala. O precioso tapete
persa tinha marcas que revelavam a posição habitual da cadeira. O cabo da tv/vídeo estava completamente esticado, porque o móvel com
rodas estava uns metros afastado da posição normal, ao canto, junto da tomada.
Uma bola de tecido, que parecia feita de meias ensopadas de saliva e sangue,
jazia no chão, perto da mesa. As janelas, de vidros duplos, estavam fechadas e
as cortinas corridas. Havia um grande cinzeiro de pedra-sabão em cima da mesa,
cheio de beatas com marcas do aperto dos dedos e filtros inteiros, não
utilizados, retirados dos cigarros, da marca Celtas, cujo maço se encontrava ao
lado. Cigarros baratos. Os mais baratos. Apenas o mais barato para Raúl
Jiménez, dono de quatro dos mais frequentados restaurantes de Sevilha, e de
dois em Sanlúcar de Barrameda e em Puerto Santa Maria, na costa. Apenas o mais
barato para Raúl Jiménez, dono de um apartamento de noventa milhões de pesetas
em Los Remedios, com vista para o terreiro da Feria, com fotografias de famosos
dependuradas na parede por detrás da sua mesa de tampo de pele. Raúl com o
torero El Cordobés. Raúl com a apresentadora de televisão Ana Rosa Quintana.
Raúl, Santo Deus, Raúl com uma faca enorme por trás de um jamón, que
devia ser do melhor Pata Negra,
flanqueado por António Banderas e Melanie Griffith, que parecia completamente
horrorizada com a unha do bicho apontada directamente ao seu seio direito.
O suor não só não parava como ia aparecendo noutros lados. No lábio
superior, ao fundo das costas, escorrendo do sovaco até à cintura. Sabia o que
estava fazendo. Estava fingindo, se autoconvencendo de que estava calor na
sala, que o café que acabara de tomar... Mas não tinha tomado café. O rosto.
Para um cadáver, era um rosto com presença. Como os santos de El Greco, cujos
olhos nunca se despegam de nós. Estavam seguindo-o? Falcón afastou-se para um
lado. Sim. Depois para o outro. Absurdo. Partidas do cérebro. Recompôs-se e
fechou com força o punho revestido de borracha. Passou a perna por cima do cabo
esticado da parede até à tv/vídeo e foi pôr-se por trás da cadeira do morto.
Olhou para o tecto e depois baixou os olhos sobre o cabelo de palha-de-aço de
Raúl Jiménez. A nuca estava densamente empastada, negra e vermelha, na zona
onde tinha batido repetidamente contra o brasão esculpido nas costas da
cadeira. A cabeça continuava presa à cadeira por um cabo flexível.
Inicialmente, devia ter estado justo, mas Jiménez tinha conseguido uma certa
folga ao debater-se. O cabo tinha penetrado profundamente na carne por baixo do
nariz e tinha subido, forçando a parte cartilaginosa do septo, que foi mesmo
serrado até atingir o osso da cana do nariz. Este pendia no meio do rosto.
Tinha igualmente dilacerado a carne das maçãs do rosto, em consequência de ter
rodado violentamente a cabeça de um lado para o outro». In Robert
Wilson, O Cego de Sevilha, 2003, tradução de Ana Pires e Pedro Pla, Publicações
dom Quixote, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.
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