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Falcón desviou os olhos do perfil da vítima e deu em cheio com a imagem
frontal, reflectida na tela apagada da televisão. Pestanejou, desejando fechar
aqueles olhos fitos, que, mesmo reflectidos, eram penetrantes. O estômago revolveu-se
só de pensar no horror das imagens que tinham sido capazes de forçar um homem a
fazer aquilo a si próprio. Estariam ainda ali, gravadas a fogo na retina, ou
mais atrás, no cérebro, num estado de digitalização de tipo cubista? Abanou a cabeça, pouco habituado a que ideias delirantes como
aquelas interferissem na frieza da sua investigação. Deu a volta, até ficar de
frente para o rosto dilacerado, ainda sem o ver integralmente porque o móvel da
tv/vídeo estava colado contra os joelhos do homem. E nesse momento, Javier
Falcón sofreu uma primeira quebra física. As pernas não se dobravam. Nenhuma
das habituais mensagens motoras conseguia superar o pânico que lhe tolhia o
peito e estômago. Fez o que o juez de guardia tinha recomendado e
desviou os olhos para a janela. Registou a luminosidade da manhã de Abril,
recordou a inquietação que sentiu enquanto se vestia na penumbra das persianas
fechadas, o desconforto deixado por um Inverno longo e solitário, com demasiada
chuva. Tanta chuva que até ele reparou que os jardins da cidade tinham rebentos
com a profusão de uma selva e a riqueza de uma vasta exposição botânica. Olhou
para o terreiro da Feria, que duas semanas depois estaria transformado numa
Sevilha de tendeiros, povoado de tendas desmontáveis, para sete dias de muita
comida, ingestão de vinhos e dança sevillanas até ao amanhecer.
Inspirou fundo e abaixou-se até ficar à altura do rosto de Raúl Jiménez.
O horrível efeito de fixidez era produzido pelos olhos salientes das
órbitas, como se tivesse problemas de tiroideia. Falcón passou os olhos pelas
fotografias em redor. Jiménez não tinha olhos protuberantes em nenhuma delas. A
causa foi... As suas sinapses chocaram como automóveis se envolvendo num
acidente em cadeia. O globo ocular visível. O sangue escorrido pela face. A coagulação
na linha do queixo. E isto? O que são estas coisas delicadas no peito da
camisa? Pétalas. Quatro. Mas ricas, exóticas, carnudas como orquídeas, com
finos filamentos, semelhantes a uma teia. Mas pétalas... Aqui? Recuou, levantou
a borda do tapete e caiu no chão de tacos, ao tropeçar no cabo de alimentação
do televisor, o que fez saltar o plugue da tomada. Engatinhou até bater
na parede; ficou sentado de pernas abertas, com espasmos nas coxas e os sapatos
tremendo. Pálpebras. Duas de cima. Duas de baixo. Nada o podia ter preparado
para aquilo.
Sente-se bem, inspetor-chefe? É você, inspetor Ramírez? Perguntou, levantando-se
devagar e desajeitadamente. A Polícia Científica está pronta para entrar. Mande
aqui o médico forense. Ramírez desapareceu do vão da porta. Falcón se recompôs.
O médico forense chegou. Viu que cort... Retiraram as pálpebras a este homem? Claro,
inspetor-chefe. O juez de guardia e eu próprio tivemos de confirmar que
o homem estava morto. Vi que as pálpebras tinham sido removidas e... Está tudo
nas minhas notas. A secretária anotou o facto, também. Era difícil não se dar por
isso. Não, não; não tenho dúvidas quanto a isso... Só me admirei que não me
tivessem dito. Acho que o juez Calderón lhe dizer, mas... A cabeça careca do
médico forense rolou sobre os ombros. Mas o quê?... Acho que ele se intimidou
com a sua experiência nestes assuntos. Tem alguma opinião sobre a causa e hora
da morte? Perguntou Falcón. Sobre a hora, cerca das quatro, quatro e meia desta
madrugada. Sobre a causa, bem, vamos a ver, o homem tinha mais de setenta anos,
excesso de peso, era fumante de cigarros, que preferia sem filtro, e, na sua
qualidade de empresário de restaurantes, apreciava um bom copo de vinho. Mesmo
um jovem em plena forma teria tido dificuldade em suportar estes maus tratos,
esta agonia física e moral, sem sofrer um choque profundo. Morreu de ataque
cardíaco, não tenho dúvidas. A autópsia vai confirmar... Ou não. O médico
forense terminou, incomodado com a firmeza do olhar de Falcón e aborrecido com
a idiotice da sua declaração final. Saiu e foi imediatamente substituído na
porta por Calderón e Ramírez.
Vamos a isto, disse Calderón. Quem chamou os serviços de emergência?
Perguntou Falcón. O conserje, disse Calderón; o porteiro. Depois da criada
ter... Depois da criada ter entrado, achado o corpo, saído correndo do
apartamento e voltado de elevador para o rés-do-chão...?» In Robert
Wilson, O Cego de Sevilha, 2003, tradução de Ana Pires e Pedro Pla, Publicações
dom Quixote, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.
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