«(…) Nessa
ocasião, Isabel sentira-se feliz pelo seu amigo de infância, embora se
recordasse de uma breve punhalada de dor ao ver Robin beijar a sua bela e jovem
noiva. Agora, enquanto ainda procurava palavras de consolo para Robin,
interrogava-se se não teria sido de ciúme. Talvez que a vossa falta de desejo
resulte de um efeito desagradável do encarceramento, sobre o vosso corpo e o
vosso espírito, sugeriu Isabel simulando estar certa dessa possibilidade. Porquê,
então, perguntou Robin, apertando
mais a cintura de Isabel e puxando-a para si, de modo que os corpos trémulos se
estreitaram um no outro, sonho constantemente, convosco, vejo o vosso rosto na minha imaginação, nada
mais desejo que escutar o som da vossa doce voz para dar repouso à minha
alma? E porquê, Isabel, vos
desejo deitada, junto a
mim, na escuridão. Isabel sentiu que continha a respiração, enquanto o
escutava, receando que o mínimo sussurro do seu hálito a impedisse de lhe ouvir
as belas palavras. Erguera o rosto para o dele e, apesar da profunda escuridão
não teve dificuldade em descobrir os seus lábios ansiosos sobre os dele. E ali tinham
ficado, esquecidos de dor, medo e culpa, nos braços um do outro até que o
murmúrio aflito do carcereiro chegou lá de cima, com a primeira luz da manhã. Agora,
já no seu palácio em Whitehall, Isabel entrou no labirinto de câmaras e antecâmaras
privadas, onde os alabardeiros guardavam as portas das salas do conselho, do
grande salão e a câmara real. Chegou num turbilhão à porta do seu quarto de dormir,
agitando as aias num corrupio, como se de folhas secas se tratassem.
Ide, ide-vos daqui, todas vós. Mantinha a capa bem
apertada, desejando que aqueles modos bruscos lhe disfarçassem o coração
sobressaltado e o tremor das pernas. Num largo movimento perfumado de saias e
saiotes sussurrantes, as aias saíram uma a uma, depois de fazerem à rainha uma
profunda reverência. A câmara ficou em silêncio, mas Isabel não ficou só. Katherine
Ashley encontrava-se junto à lareira, de braços cruzados, com uma expressão
triste no rosto preocupado. Apesar de ser rainha, Isabel não se atrevia a
ordenar à senhora Ashley que saísse. Preferiu voltar-se de costas e chegar-se
ao lume, tentando disfarçar o nervoso com um sorriso. Sem pronunciar palavra, a
mulher retirou-lhe dos ombros a capa de lã de Dudley e pô-la no braço. Não vos
preocupeis Kat, o sangue não é meu, disse Isabel voltando-se para a aia. Apesar
do aviso, os olhos de Kat abriram-se mais ao ver as manchas acastanhadas que
sujavam a jaqueta de montar de Isabel. Em silêncio, cobriu os olhos com a mão
enrugada e tentou acalmar-se. Concretizavam-se os seus piores receios. A jovem
princesa, que desde pequena estivera a seu cargo, transformara-se numa altiva
rainha. Nesse momento fantástico, em que na Abadia de Westminster, sob o
resplendor de dez mil velas, a coroa de Inglaterra fora pousada pela primeira
vez sobre a cabeça da sua querida menina, a relação entre Kat e Isabel
alterara-se.
Porém, nada mudara, pensou, ao mesmo tempo que baixava a mão trémula do rosto. Absolutamente nada. Estendeu
a mão e começou a desabotoar-lhe a jaqueta de veludo. A rígida postura de Isabel descontraiu-se e deixou cair os braços ao contacto familiar das mãos de Kat. Sabia que a sua aia
sentiria o cheiro de Dudley na sua roupa e no seu corpo. Sabia que Kat se
esforçava agora por encontrar palavras para exprimir a sua preocupação, sem
quebrar as regras de etiqueta,
necessárias entre elas. Quando Isabel era
uma menina, uma princesa afastada da corte, com
poucas possibilidades de subir ao trono, Kat mantivera uma disciplina rigorosa,
mas amável. Os seus instintos protectores
eram quase felinos, imbuídos de ardor e lealdade.
Sempre lhe falara com franqueza e severidade, quando
a situação o exigia. Para a menina praticamente
abandonada pelos parentes de sangue, Kat Ashley e William, seu marido, eram os únicos portos de abrigo na terrível tempestade da sua jovem existência. E, agora Kat, sentia-se atormentada pela angústia. Quereis que vos prepare um banho?,
perguntou, aparentando calma». In Robin
Maxwell, O Diário Secreto de Ana Bolena, Planeta Editora, colecção Tudor 1,
2002, ISBN 978-972-731-131-6.
Cortesia de
PEditora/JDACT