sábado, 29 de setembro de 2018

Um Intelectual na Política. Mário Pinto Andrade. «Todas as formas de criação literária procedentes desta região ficaram no estado oral e mantidas numa espécie de clandestinidade tribal»

jdact

Literatura e Nacionalismo em Angola
«(…) É evidente que as condições gerais da existência que foi imposta ao escritor nos países africanos sob dominação portuguesa explicam o estado actual de desenvolvimento da literatura nesses países e a ignorância do público internacional acerca do seu lugar no património cultural da África Negra. Isto tem a ver, em primeiro lugar, com as consequências de um sistema colonial particularmente opressor. Com efeito, uma estrutura social do tipo colonial não poderia de maneira nenhuma suscitar o desenvolvimento da cultura. Não é apenas uma classe que na situação colonial dispõe à vontade dos meios de produção espiritual, mas toda a sociedade dominante. Já se notou o suficiente como o colonizador manobra para reduzir os colonizados a simples consumidores da cultura dele, colonizador.
A política de assimilação espiritual praticada pelos portugueses é baseada num critério de superioridade cultural, porque se integra no quadro de uma ideologia colonial. Alguns, como o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, afirmam que os países tropicais colocados outrora ou actualmente sob a dominação de Portugal e sob a direcção do cristianismo (Brasil, África, Índia, Madeira, Açores) constituem ainda hoje uma unidade de sentimento e de cultura. A operação desta unidade seria, em sua opinião, um resultado lógico dos métodos e das condições da colonização portuguesa, da cordialidade e da simpatia características do povo português, o mais cristão dos colonizadores modernos nas suas relações com as pessoas ditas inferiores. O Português, pelos seus contactos com os árabes, possuiria uma aptidão hereditária para viver sob o sol dos trópicos e uma predisposição para as aventuras sexuais com as mulheres de cor, sob o signo da Vénus morena...
Freyre admite desde aí uma originalidade, uma forma de aptidão biológica e social do português, civilizador dos trópicos. Se por esta doutrina do luso-tropicalismo se devesse entender, como quer o sociólogo brasileiro, uma civilização e uma cultura próprias a todos os países tropicais de língua portuguesa teria sido preciso verificar em todas essas áreas formas de produção espiritual comuns a umas e outras. Ora não é nada assim. Não há tradições comuns vividas de uma maneira autêntica entre tal camponês de Angola e tal outro da província do Alentejo, entre o moçambicano e o brasileiro. Aliás, a percentagem de analfabetismo entre as populações negras da Guiné, de Angola e de Moçambique (99%) invalida a existência de uma civilização luso-tropical veiculada pela língua portuguesa.
No caso português, a assimilação é sempre traduzida praticamente por uma desestruturação dos quadros negro-africanos e a criação de uma elite quantitativamente reduzida. Ela apresenta-se como a receita mágica que conduziria o indígena das trevas da ignorância até à luz do saber. Uma forma de passagem do não-ser ao ser cultural, para empregar a linguagem hegeliana. Também os intelectuais dos países sob a dominação portuguesa se esforçaram por enfrentar e resolver correctamente o problema gerado pela assimilação: rejeição definitiva do substratum negro-africano? Diluição na cultura dominante? Aceitação da pseudo-condição de mestiço cultural?
Paralelamente a estas interrogações, e por vezes confundidos com elas, delineiam-se os gestos e as atitudes fundamentais que vão conduzir os intelectuais angolanos ao aprofundamento da sua própria consciência nacional. Os escritores que decidem rejeitar o estilo literário aprendido na escola portuguesa vão ajudar, através das suas obras, a cristalizar nos países o sentimento de independência nacional. Este esforço exercer-se-á primeiro sobre um meio restrito, o meio urbano, mas o povo entenderá os seus ecos. Em Angola como em Moçambique exerce-se uma das pressões coloniais mais fortes sobre todas as tentativas de afirmação cultural e particularmente literária dos criadores africanos. Assim, as culturas africanas, em geral bantas, nunca puderam encontrar um quadro para a fixação completa e o desenvolvimento de uma literatura escrita moderna. Todas as formas de criação literária procedentes desta região ficaram no estado oral e mantidas numa espécie de clandestinidade tribal.
À medida que os cidadãos saídos da comunidades africanas se elevavam até à tomada de consciência cultural, pelo jogo de uma administração que deixava alguns lugares vagos aos negros nos estabelecimentos escolares da colónia, eles exprimiam-se em português. Isso não impediu que em Angola espíritos clarividentes como Cordeiro Matta avaliassem a contribuição das culturas bantas e empreendessem a fixação da sua língua materna. Foi Cordeiro Matta quem, no fim do século XIX, estabeleceu o primeiro dicionário quimbundo-português e quem, além dos seus ensaios de análise histórica de conto e de poesia, realizou uma obra consequente no domínio do folclore angolano». In Mário Pinto Andrade, Um Intelectual na Política, coordenação de Inocêncio Mata, Edições Colibri, Lisboa, 2000, ISBN 972-772-188-5.

Cortesia de Colibri/JDACT