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de Julho de 1793
«(…) Meteu a mão no bornal, no
qual sempre carregava peso que lhe parecia inusitado, ao mesmo tempo não sabia
sair de casa sem o pequeno cantil, o livro que andava a reler, o Verdadeiro
Método de Estudar, de Luís António Verney, e o caderno de apontamentos com o
1ápis associado, a maçã vermelha para algum ataque de fome e um crucifixo de
ouro, peça raríssima que devia estar num cofre, mas ele acreditava ser o melhor
talismã do mundo, pois cria ter andado nas mãos de Cosme e Damião, santos
sírios que o acompanhavam para onde quer que fosse, convencido estava de o
terem salvado nas tremendas horas de aflição em alto-mar. A mão apalpou o livro
e de seguida o outro de apontamentos que se encaixava num terceiro volume, com
uma capa veludosa. Mas que é isto?
Puxou aquele objecto perfumado de
eucalipto e não o reconheceu nem ao toque, nem à vista. Afastou-o do rosto e
olhou em volta, como se tivesse medo de ser identificado como ladrão de algo que
desconhecia. Encontrava-se à beira da sombra de uma casa e desviou-se para a
sua copa, ganhando privacidade psicológica na sua protecção. Folheou-o. O rosto
estarreceu-se como se trepidado por um raio e não por uma página manuscrita.
Como é que um diário ou coisa parecida de alguém daquele barco lhe viera parar
à bolsa?, perguntava-se, atemorizado. De coração aos trambolhões, ruborizado e
amaldiçoando quem o acordara nessa manhã, chegou frei João à presença do senhor
ministro da Marinha e Domínios Ultramarinos.
Desta feita ninguém o fez esperar
e de imediato relatou todas as palavras que ouvira do arrais, tentando ser o
mais fiel possível à tradução. Junto do ministro, conseguiu manter-se
aparentemente calmo, mas talvez alguma ansiedade o tenha revelado, pois a dado momento
aquele perguntou-lhe. Agarra esse bornal como se daí adviesse o ar que respira.
Porque não se põe à vontade, o meu criado não lhe disse onde pousar os seus
pertences? Disse, disse, mas sou muito distraído, meu senhor, perdoe-me se lhe
pareço desconfortável, mas não é de facto esse o meu estado, apenas evito ter
de aqui voltar para o recolher. Não lhe ocorreu melhor desculpa.
Felizmente, o ministro, com o
tanto que tinha para se ocupar, não fez questão nem insistiu. Ditava algumas
ordens aos secretários e os seus textos pareciam eternos. Quando se enganava,
amachucando a folha e atirando-a para um molho de desperdícios, o escrivão
recomeçava. Frei João sentia um enorme apelo para sair dali, a correr, se
pudesse, mas apenas cerrava os dentes em sinal oculto de tensão. Foi olhando
para os reposteiros, os cortinados, as carpetes, o papel de parede com
flores-de-lis, retocados por cor dourada, a estátua de marfim de um anjo, uma
mulher de seios descobertos, os castiçais prateados, o quadro de dona Maria em
pose irrepreensível, intuindo a vigia ao gabinete, e a grande tapeçaria
pendurada na parede, na qual figurava uma caçada em ponto pequeno perante a
grandiosidade de árvores centenárias. A partir de um dado momento, já não tinha
mais nada para onde olhar.
Observou então o ministro,
apercebendo-se de que dele recebia uma desarmante simpatia. Teve tanto tempo
para pensar que até lhe ocorreu mostrar o caderno e ser sincero nos factos
ocorridos havia pouco menos de duas horas. A imagem mental do seu crucifixo de ouro
em contacto com aquele caderno aveludado quase o condenou a uma curiosidade
fatal. Concentrou-se na sombra balouçante das árvores frondosas que via na
enorme janela e manteve-se de aspecto sereno.
Não faz sentido dar um manuscrito
em árabe a alguém que não sabe traduzi-lo. Faça eu o que fizer, este objecto
voltará para mim.
Está decidido! O ministro
levantou a voz, aparentemente procurando a atenção do monge, e começou a ditar
para os escribas: determino que amanhã se proceda a uma visita ao arrais para
ser recebido em diálogo. O monge pensou que seria incumbido de o ir avisar e
foi com alívio que ouviu o ministro: que se lhe entregue uma carta escrita por frei
João em mãos por um aviso a informá-lo da hora do encontro. Amanhã conto com os
seus serviços, meu caríssimo frei João Sousa. Agora também está dispensado. Por
hoje! Vá descansar, apenas lhe peço a bênção. Deus esteja consigo.
O criado abriu a porta
convidando-o a abandonar os aposentos. Frei João estava finalmente a caminho do
seu mosteiro. Naquele dia não voltaria ao livro que o cativava com muito
interesse havia alguns dias. Sabia bem que leitura o conduziria ao fim da noite».
In
Raquel Ochoa, As noivas do Sultão, 2015, Edições Parsifal, 2015, ISBN
978-989-876-008-1.
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