segunda-feira, 15 de outubro de 2018

As Noivas do Sultão. Raquel Ochoa. «A nau, apenas preparada para a viagem de um dia, no máximo dois se algum percalço ocorresse, teve de enfrentar o oceano»

jdact

13 de Julho de 1793
«(…) Desta vez não adormecera desleixadamente. Quando decidiu dormir, fechou o diário e embrulhou-o numa bata que usava para os trabalhos no jardim. Colocou-o debaixo de outras roupas no gavetão da cómoda. A letra era muito difícil de perceber, papel escrito e rasurado com frequência, má caligrafia, feita à pressa, escrita ilegível propositadamente para ninguém o ler? Quem poderia saber? Apenas conseguiu traduzir três páginas e depreendeu tratar-se do diário de alguma das concubinas iniciado na ilha da Madeira, provavelmente já depois de muitos dias à deriva no oceano, pois já se sabia que entre Rabat e o arquipélago demoraram pelo menos oito dias. O que lera intrigara-o imenso, mas colocarem o diário na sua bolsa, por si só, revelava-se desconcertante. Uma coisa era certa, referia-se a um registo íntimo sobre a agruta que aquelas mulheres haviam passado, em inacreditáveis condições.
A nau, apenas preparada para a viagem de um dia, no máximo dois se algum percalço ocorresse, teve de enfrentar o oceano. Ninguém sabia com que comida haviam sobrevivido. Esteve quatro horas debruçado à luz da vela e, na impaciência do alongar da noite, folheou todo o diário em busca de um nome, algo que lhe desse a entender a pessoa por trás daquele gesto, mas nada. Porém, quando se preparava para abandonar a tradução, encontrou um estranho parágrafo:

Na verdade, neste constante ir e vir das marés, num conjunto aparentemente homogéneo de mulheres obedientes ao seu sultão, nem todas albergam o mesmo sentimento. Há quem disfarce o prazer que teria a morte. As que disfarçam a alegria por estarem perdidas, com sorte engolidas por este mar.

Benzeu-se e disse em voz baixa: pelo sinal da santa cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor dos nossos inimigos. Afastou-se do objecto tentando escondê-lo o melhor possível. E teve a certeza: se queria entender o que se passava naqueles barcos, bem como as razões de quem o escrevera e se desfizera dele, teria de o ler palavra a palavra, vírgula a vírgula, tal qual um pacto, ou a atenção que os traiçoeiros contratos com desconhecidos costumam levantar. Dormiu demais e, atordoado, percebeu que a hora do encontro seria dali a pouco menos de quarenta minutos. Um coche vinha buscá-lo, mas nem um trapo passara no corpo a disfarçar os odores deixados pela noite de Verão. E perturbava-o imenso ter de devolver aquele caderno sem perceber porque viera afinal até si. Mas também não posso mantê-lo comigo.
Duas possibilidades se afiguravam válidas. Entregar o diário ao ministro e delegar a tarefa, ou seja, deixar que as autoridades decidissem se devia ser lido ou não, contando toda a verdade, apenas omitindo que dera conta do misterioso objecto ainda antes de se terem reunido. Ou, num momento que conseguisse escapar das vistas de todos, pousar o diário a bordo, e deixar o destino encaminhá-lo para longe de si, indiferente às consequências dessa acção. Frei João coçou a cabeça, sentado sobre a colcha amarfanhada e pensando sobre o que fazer. Ouviu os passos da pessoa que o chamava a bons pulmões, desassossegando-o de imediato.
Uma brisa com planos de ser vento norte, mais tarde, caracterizava o rio naquele novo dia. A nau deslizava vagarosamente de um lado para o outro, como pêndulo preguiçoso. Faça favor de subir, exclamou o arrais, com um sorriso que dava mais uma ordem do que pura afabilidade. Frei João queria tudo menos voltar àquele barco sem a companhia, leia-se protecção, do ministro, mas não havia alternativa. O arrais, que misturava com perícia o tabaco e o kif, perante a atrapalhação do frade, indicou a um criado que o auxiliasse na subida. Empurrado pelas circunstâncias, viu-se de novo dentro da mesma salinha onde um cortinado se remexera com alma de gente e onde aquele arrais, agora tão solícito e presente, o tinha tratado de modo distante». In Raquel Ochoa, As noivas do Sultão, 2015, Edições Parsifal, 2015, ISBN 978-989-876-008-1.

Cortesia de EParsifal/JDACT