«(…) Maria Cláudia não mostrou ter apreciado a mudança de tom.
Respondeu, indiferente: vou lá abaixo à dona Lídia, telefonar. Rosália
irritou-se de novo, talvez porque a filha enfiara uma bata caseira e era,
agora, discretamente vestida como estava, incapaz de encantá-la. Sabes bem que
não gosto que entres em casa da Lídia. Os olhos de Maria Cláudia eram mais
inocentes que nunca: ora essa! Porquê? Não percebo. Se a conversa continuasse,
Rosália teria de dizer coisas que preferia calar. Sabia que a filha as não
ignorava, mas entendia que há assuntos em que é prejudicial tocar diante de uma
menina solteira. Da educação que recebera ficara com uma noção do respeito que
deve existir entre pais e filhos, e aplicava-a. Simulou não ter percebido a
pergunta e saiu do quarto. Maria Cláudia, sozinha, sorriu. Diante do espelho desabotoou a bata, abriu a camisa e
contemplou os seios. Estremeceu. Uma leve vermelhidão lhe tingiu o rosto.
Sorriu de novo, um pouco nervosa, mas contente. O que fizera provocara-lhe uma
sensação agradável, com um sabor a pecado. Depois, abotoou a bata, olhou uma
vez mais o espelho e deixou o quarto. Na cozinha, aproximou-se da mãe, que
torrava fatias de pão, e beijou-a. Rosália não pôde negar que gostara do beijo.
Não o retribuiu, mas o coração ficou-lhe batendo de contentamento: vai-te
lavar, filha, que as torradas estão quase prontas.
Maria Cláudia encerrou-se na casa de banho. Voltou
fresquíssima, a pele brilhante e limpa, os lábios sem pintura ligeiramente
entumecidos pela água fria. Os olhos da mãe cintilaram ao vê-la. Sentou-se à
mesa e começou a comer com apetite. Sabe bem ficar em casa uma vez por outra,
não é?, perguntou Rosália. A rapariga riu com gosto: ora, vê? Tenho, ou não
tenho, razão? Rosália sentiu que se dera demasiadamente. Quis emendar, compor a
frase: está bem, mas sempre é bom não abusar. No escritório não ralham comigo. Podem
ralhar, filha. E é preciso conservar o emprego. O ordenado do teu pai não é
grande, bem sabes. Esteja descansada. Eu sei fazer as coisas. Rosália gostaria
de saber como, mas não quis perguntar. Acabaram de comer em silêncio. Maria
Cláudia levantou-se e disse: vou pedir à dona Lídia que me deixe telefonar. A
mãe ainda abriu a boca para uma objecção, mas calou-se: a filha já ia no
corredor. Escusas de fechar a porta, visto que não te demoras. Na cozinha,
Rosália ouviu a porta fechar-se. Não quis acreditar que a filha o tivesse feito
de propósito para a contrariar. Encheu o alguidar e começou a lavar a louça
suja da refeição da manhã.
Maria Cláudia não comparticipava dos escrúpulos da mãe quanto à
inconveniência das relações com a vizinha de baixo, e, pelo contrário, achava Lídia
muito simpática. Antes de tocar, ajeitou a gola da bata e passou as mãos pelo
cabelo. Lamentou não ter dado um poucochinho de cor aos lábios. A campainha deu
um som estrídulo que ficou a ressoar no silêncio da escada. Por um pequeno
ruído que ouviu, Maria Cláudia teve a certeza de que Justina a espreitava pelo
ralo. Ia voltar-se, com um gesto de provocação, mas nesse momento a porta
abriu-se e a Lídia apareceu. Bom dia, senhora Lídia. Bom dia, Claudinha. Que a
traz por cá? Não quer entrar? Se me dá licença... No corredor penumbroso, a
rapariga sentiu envolvê-la a tepidez perfumada do ambiente. Então, que há? Venho
maçá-la, mais uma vez, senhora. Ora, ora, não maça nada. Bem sabe que gosto
muito que venha a minha casa. Obrigada. Queria pedir-lhe se me deixava
telefonar para o escritório a dizer que não vou hoje. À vontade, Claudinha. Empurrou-a
docemente na direcção do quarto. Maria Cláudia nunca ali entrava sem se
perturbar. O quarto de Lídia tinha uma atmosfera que a entontecia. Os móveis
eram bonitos, como nunca vira, havia espelhos, cortinas, um sofá vermelho, um
tapete felpudo no chão, frascos de perfume no toucador, um cheiro de tabaco
caro, mas nada disto, isoladamente, era responsável pela sua perturbação.
Talvez o conjunto, talvez a presença de Lídia, qualquer coisa imponderável e
vaga, como um gás que passa através de todos os filtros e que corrói e queima.
Na atmosfera daquele quarto, perdia sempre o domínio de si mesma. Ficava tonta
como se tivesse bebido champanhe, com uma irresistível vontade de fazer
tolices. Ali tem o telefone, disse Lídia. Esteja à vontade». In José Saramago, Claraboia, 1953,
Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.
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